Não sei que sentimentos ou ideias o sorteio do Mundial de Futebol, realizado no dia 5 de dezembro no Kennedy Center, em Washington, despertou nos comentadores de futebol que ocupam diariamente, horas a fio, os nossos ecrãs televisivos. Não tenho instrumentos que me permitam “medir” tais sentimentos, se é que foram vividos, ou ideias, se é que foram pensadas.Ainda assim, pelo que tenho visto e escutado, parece-me difícil recusar que a prioridade analítica - os factos morreram, promovem-se análises até à exaustão - tem sido sopesar as hipóteses desse novo caminho marítimo para o êxtase coletivo. A saber: Portugal vai ou não vai ser Campeão do Mundo?Para os valores dominantes no Mundo do Futebol, no seu imaginário social e na sua filosofia mediática, o Kennedy Center terá sido um palco igual a tantos outros, inócuo e descartável. Que, ao longo de mais de meio século (a inauguração ocorreu a 8 de setembro de 1971), a instituição que celebra a memória de John F. Kennedy (1917-1963) tenha funcionado como um espaço genuinamente democrático de cultura, aberto à exuberante pluralidade das artes, eis o que parece ser indiferente perante a sua ocupação pela FIFA e pelos poderes futebolísticos..Para selar a sua inequívoca vitória simbólica, o presidente da FIFA, Gianni Infantino, comoventemente alheado do efeito caricatural do seu gesto, decidiu mesmo criar um “Prémio da Paz FIFA” que teve como primeiro homenageado o presidente Donald Trump, precisamente a mesma pessoa que, no passado dia 7 de fevereiro, proclamou que ia fazer o Kennedy Center “great again”. Entretanto, Trump já desmantelou o coletivo de diretores (Board of Trustees), seguindo-se uma pequena avalanche de despedimentos - sem esquecer que das cerca de 370 pessoas que trabalhavam no Kennedy Center, mais de uma centena decidiu ir-se embora. Para já, Trump concluiu a remodelação com a nomeação de um novo presidente (“chairman”) - o seu nome: Donald Trump.Ainda antes do sorteio, no dia 3, num notável artigo em The Athletic (o site do New York Times dedicado ao desporto), Adam Crafton e Henry Bushnell lembravam como a saga destruidora da Administração Trump menospreza a nobreza moral de uma “instituição sagrada”. E não só porque o seu Board of Trustees sempre refletiu o clássico bipartidarismo do sistema político dos EUA - também, e sobretudo, porque a celebração feliz dos contrastes das práticas artísticas fazia do Kennedy Center um lugar em que era possível estar “ao abrigo” das convulsões da própria vida política.Uma certa boa consciência desta época de pueris purificações morais e artísticas dirá que se assiste, assim, a uma agressão contra a cultura. Continuamos, aliás, a pagar um elevado preço político por causa desse simplismo analítico. Porquê? Porque alimentamos a noção piedosa de que a cultura (aquilo a que damos o nome redentor de “cultura”) existe como um território de inevitável conciliação e equilíbrio. Em boa verdade, o que está a acontecer configura o agressivo triunfo de um outro universo cultural, visceralmente ligado aos valores oficiais da indústria do futebol - tais valores podem mesmo ajudar a definir e promover as linguagens de algumas formas de poder político.Sintoma local deste novo (des)equilíbrio político é o facto de, num momento ou noutro, todas as forças políticas gritarem contra as fragilidades económicas e desigualdades sociais do nosso país, ao mesmo tempo que Portugal se envolve, heroicamente, na organização do Mundial de Futebol de 2030. O facto tem sido recoberto por uma indiferença política que, em última instância, reflete uma trágica demissão cultural.Jornalista