A nossa privacidade está em alto risco

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Há uma nova ameaça disfarçada de virtude a pairar sobre a Europa digital. Chama-se Chat Control e apresenta-se como um escudo contra o abuso sexual infantil. Mas, na prática, é um Cavalo de Tróia que mina a privacidade de todos nós e fragiliza a própria segurança da internet.

À revelia do artigo 12.º da Carta dos Direitos Humanos e do RGPD, a proposta da Comissão Europeia obriga as plataformas e serviços de mensagens, como o WhatsApp ou o Signal, passando por e-mails, clouds o u até chats de videojogos, a vigiar cada comunicação, sem mandado judicial, sem suspeitos identificados e sem limites. É uma “pesca de arrasto” que transforma todos nós em potenciais culpados.

O método é o uso de algoritmos de Inteligência Artificial, muito céleres mas altamente falíveis, com taxas de erro na ordem dos 80%, pois quatro em cada cinco alertas são falsos positivos. Aplicado ao tráfego diário de plataformas globais, falamos de milhões de vidas expostas, investigações inúteis e inocentes marcados como suspeitos.

E para que isto funcione, é necessário violar o último reduto da segurança digital, que é a encriptação ponto-a-ponto. O plano prevê varrer mensagens antes de serem cifradas a partir dos dispositivos dos utilizadores. Ou seja, portas das traseiras (backdoors) permanentemente abertas a governos abusivos, hackers ou chantagistas. Criar uma vulnerabilidade universal em nome da proteção é um paradoxo perigoso, pois longe de proteger crianças, abre portas a novos riscos para todos, incluindo as próprias vítimas.

As consequências já se verificam, pois o Signal e outros serviços anunciam a saída da Europa caso a lei avance. O resultado seria um continente mais pobre em ferramentas seguras e mais dependente de plataformas que aceitam sacrificar direitos. O retrocesso é brutal, em que décadas de construção de um ecossistema digital mais robusto e livre seriam destruídas em nome de uma falsa promessa de segurança.

Em julho de 2022, na Assembleia da República, a proposta da Iniciativa Liberal para recomendar ao Governo a rejeição do regulamento europeu foi chumbada com votos contra do PS, abstenções do PSD e PAN, a favor do IL, BE, PCP e Livre, enquanto o Chega saiu da sala e não votou. Por isso, a decisão manteve o Executivo livre para negociar em Bruxelas.

Já na União Europeia, houve em dezembro de 2024 uma tentativa de bloqueio, travada por uma minoria de Estados. O assunto regressou em 2025 com força renovada, impulsionado pela presidência dinamarquesa do Conselho e conta hoje com o apoio de cerca de 19 governos nacionais. O Parlamento Europeu, através da comissão LIBE, já se pronunciou contra a vigilância em massa e a quebra da encriptação, mas a pressão política persiste para que a proposta avance até outubro de 2025.

Ao contrário dos cidadãos comuns, os funcionários estatais estariam isentos da vigilância, o que denuncia a clara consciência do risco e do perigo desta lei.

O Chat Control não é apenas uma medida técnica. É uma escolha da sociedade, entre aceitar que cada palavra privada seja analisada ou defender o direito a um espaço digital seguro e livre de intrusão. Benjamin Franklin já avisava que “Quem abdica de liberdade essencial por segurança temporária não merece nenhuma das duas”.

A Europa deve investir em prevenção, reforçar meios de investigação e apoiar vítimas. Mas, transformar a internet num laboratório de vigilância em massa é um retrocesso que compromete direitos fundamentais e enfraquece a própria segurança das redes, como sublinha o movimento cívico chatcontrol.pt.

Ainda vamos a tempo de dizer não a este Cavalo de Tróia e de avançar com soluções tecnológicas e políticas eficazes. O futuro digital joga-se hoje e não podemos deixar que a promessa de proteção se transforme na maior ameaça à nossa liberdade.

Especialista em governação eletrónica

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