A mudança silenciosa nos tribunais (e não é a que pensa!)

Por vezes temos de olhar os números no tempo para melhor reconhecer a realidade, especialmente quando todos os estímulos e incentivos parecem aconselhar noutra direção e transformam, reconstruindo, a própria realidade.

Nos últimos dias, algumas posições sobre o funcionamento da justiça foram apresentadas, desde logo pela via da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, por ocasião do seu último congresso. Elas permitem retomar e confrontar alguns dos lugares mais comuns com que a administração da justiça é recorrentemente apelidada.

Um destes é o de uma manifesta insuficiência de pessoas ao serviço do sistema, sejam juízes, procuradores ou funcionários judiciais. O discurso público e publicado, desde há anos, estabilizou como verdade que tenha existido - desde quando ou a partir de quando? - uma redução acentuada de magistrados e de funcionários nos nossos tribunais. Independentemente da verdade e acerto desta afirmação e sem se cuidar, também, de mencionar as necessárias alterações das condições de trabalho e das tarefas exigidas a uns e outros, desde logo com a criação de um processo judicial eletrónico, uma rotura, felizmente já antiga, entre nós.

Há pouco tempo publicadas para o ano de 2021, as estatísticas do sistema de justiça em Portugal dão nota, contudo, de uma realidade divergente deste discurso.

Se olharmos para a segunda década do nosso século, descobrimos facilmente, comparando os números de 2010 e de 2020, os 1968 juízes em funções no primeiro ano e, estranhamente, os 2015 juízes em funções em 2020. Pensando nos magistrados ao serviço do Ministério Público, para o mesmo período, encontramos em 2010 um total de 1463 procuradores e, em 2020, com a mesma estranheza, descobrem-se 1483 procuradores em funções. No caso dos funcionários judiciais, há efetivamente uma redução, de 8628 para 7499 trabalhadores - mesmo que esta possa significar um regresso a uma determinada dimensão desse corpo, a da década de 1990, que apenas um aumento muito relevante no número de funcionários judiciais ao longo dos anos 1996 a 2000 veio contrariar.

Mas este é um sistema público que, independente dos diagnósticos que possamos fazer sobre a sua eficiência e produtividade, tem uma procura que não é sempre a mesma e que mudou radicalmente em pouco tempo, apesar de isso ser pouco discutido ou até notado. Houve efetivamente uma revolução estranhamente silenciosa na administração da justiça em Portugal, que foi a do desaparecimento da procura.

Em 2010, os tribunais portugueses decidiram 354 mil processos cíveis. Em 2020, apenas 280 mil. Isto deve-se a um aumento do tempo de duração do processo, eventualmente provocado pela tal diminuição de recursos humanos, que em grande medida não existiu? Não, até pelo contrário. Deve-se essencialmente ao facto de, em 2010, terem dado entrada nos tribunais (ações cíveis) 480 319 processos e, em 2020, este número ter decaído para 265 674. E, caso se antecipe que a pandemia teve algo a dizer sobre isto, os valores de 2021 são muito equivalentes aos de 2020 (e, curiosamente, até contabilizando-se dois mil processos iniciados a menos).

Ou seja, estamos perante um sistema que, lidando agora com quase metade da procura de há uma década - se por boas ou más razões, esse é outro tema e provavelmente por várias más -, manteve em boa medida as mesmas pessoas, quando não mais, ao seu serviço.

Seguramente que trabalho não lhes falta nem é objetivo deste pequeníssimo exercício de contrafactualidade menorizar dificuldades legítimas desta ou daquela profissão. Mas pegarmos em tempos novos simplesmente com as nossas convicções do passado tem sempre um risco, que é o de podermos ter tido razão um dia - e nunca o soubemos.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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