A morte é minha?

Dizem que a eutanásia está em discussão há dez anos e que por isso já chega. Há que avançar. Acontece que hoje muitos têm mais dúvidas do que há uma década. Para a maioria, tudo isto começou por ser algo evidente: alguém em dor excruciante e irreversível (por exemplo, uma doença oncológica terminal) deveria ter o direito de escolher morrer de forma segura e com dignidade. Enfim, o golpe de misericórdia . Só que não. Como o debate internacional e a prática legal global têm demonstrado, a questão não é tão benigna, nem tão lisa quanto parece.

Vejamos: em primeiro lugar, esta lei visa ou responde a quem, pura e simplesmente, pretende terminar com a sua vida de forma eficiente e confortável? Para ter acesso à morte não devia bastar a vontade, respeitando integralmente a liberdade individual de dispor da própria vida? Olhando para o confuso, defensivo e deselegante articulado, percebe-se que não: fica de fora quem tem a intenção de suicidar-se.

Logo começa a imperar, então, o julgamento de terceiros sobre se o sofrimento é suficiente ou não, legítimo ou não, tolerável, atendível. O próprio fica desapossado da sua auto-determinação, o que nos leva a um segundo problema: se ficamos dependentes do terrível julgamento de terceiros, quem pode garantir que não se forma mesmo uma "rampa deslizante" e que para os tais oráculos demência, quarta idade, tetraplegia, etc., são mesmo razões para eutanasiar? Que tutela omnisciente é essa ? A médica? Técnica? Que colégio pericial pode interferir na minha maior decisão ? Logo aqui deixa de haver qualquer "direito a uma morte digna" - o direito, o monopólio desse direito, passa a depender dos médicos e das suas referências éticas e não do próprio, tão pouco da lei. No momento, quem tudo decide não é o doente, o familiar, a legislação. É o médico e ele apenas.

Olhando para os profundos dilemas que encerra, discutindo-se ainda os donos da morte, olhando os números estupidamente crescentes (aumentos de 50% anuais), não serão os tais dez anos, esses sim, cedo demais?"

A demência e o seu catch 22 ilustram a complexidade - se sofrer de tal doença e ainda estiver capaz de decidir se quer morrer, provavelmente dir-lhe-ão que é demasiado cedo e que ainda tem bons anos pela frente. Quando a coisa já estiver a galope, a escolha estará, irremediavelmente, nas mãos dos "especialistas". Já será demasiado tarde.

Por fim, não se trata de alarmismos, mas de uma triste realidade - cada vez mais surgem relatos terríveis sobre abusos. Na pioneira Holanda, a polémica é muita, sobretudo com o aumento de casos de cidadãos com demência eutanasiados. No Canadá, surgem situações repugnantes, como a eutanásia de pessoas com carências financeiras, com doença mental, sem serviços médicos. Neste ano, tornaram-se mediáticos dois casos de duas senhoras que sofriam de uma condição crónica e que procuraram o suicídio assistido depois de os seus pedidos quanto a condições de habitabilidade serem recusados. E não, não se trata de sensacionalismo. Há mesmo um escorregadio em curso - e deveria bastar um caso para nos fazer parar e reflectir não apenas sobre o dito direito a morrer com dignidade, mas também acerca de o de viver com ela.

A eutanásia é legal em sete países e o suicídio assistido em algumas jurisdições dos EUA e Austrália. Olhando para os profundos dilemas que encerra, discutindo-se ainda os donos da morte, olhando os números estupidamente crescentes (aumentos de 50% anuais), não serão os tais dez anos, esses sim, cedo demais?

Psicóloga clínica. Escreve de acordo com a antiga ortografia

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