A morte da literacia visual
Literacia visual - eis uma bela expressão. A sua pertinência é tanto maior, quanto o simples reconhecimento da sua existência pode favorecer um pensamento capaz de nos libertar das preguiçosas rotinas de algumas linguagens televisivas que detêm um poder efetivo de anular o gosto de olhar e compreender.
Veja-se o que acontece com certas formas de “acompanhamento” dos jogos de futebol. O acontecimento (entenda-se: o próprio jogo) está ausente e o ecrã divide-se numa galeria de personagens que veem aquilo que o espectador não vê, implicitamente encarnando a televisão como um pequeno monstro iconográfico: as imagens são tratadas como gadgets arbitrários e, no limite, alheias a qualquer responsabilidade discursiva. Há mesmo quem mostre os treinadores através de imagens que provêm de outros jogos - o que gera um efeito de montagem involuntariamente burlesco: se tivermos acesso ao direto do mesmo jogo, verificamos que, no mesmo instante, há um treinador vestido de duas maneiras diferentes.
Não é, entenda-se, uma banal questão de “verdade/mentira”. As coisas são ligeiramente mais complexas do que qualquer dicotomia moralista. É, isso sim, um problema de literacia: de quem transmite e de quem recebe aquilo que é transmitido.
No Dicionário Houaiss encontramos uma descrição clássica de literacia: “conjunto de práticas que denotam a capacidade de uso de diferentes tipos de material escrito.” Tal significado alarga-se no Dicionário da Universidade de Cambridge quando se caracteriza, precisamente, o conceito de literacia visual: “capacidade de compreender as ideias e os significados daquilo que vemos, especialmente símbolos e imagens.”
Vale a pena regressar a um cristalino testemunho de Martin Scorsese, datado de 2012, disponível na conta de YouTube da Edutopia (site criado em 1991 pela Fundação George Lucas para a Educação). O realizador de filmes como Taxi Driver (1976), Tudo Bons Rapazes (1990) e A Invenção de Hugo (2011) evoca a sua própria educação. Falando dos limites de conhecimento dos pais e do facto de não haver livros em sua casa, Scorsese recorda que, no começo, a sua educação foi eminentemente visual - e não só nas salas escuras, também no pequeno ecrã das décadas de 1940/50, período que ele recorda como uma Idade de Ouro da televisão dos EUA.
Mesmo “sem compreender” o que estava a acontecer, Scorsese reconhece que essa imersão numa riquíssima “tradição visual” foi decisiva na sua formação: havia “um outro tipo de inteligência”, cujo objetivo era “contar uma história” em que “realizador, argumentista e diretor de fotografia” trabalhavam para envolver o olhar do espectador.
Daí a sua proposta eminentemente pedagógica, em tudo e por tudo contrária à avalanche de imagens redundantes, ou apenas estupidamente especulativas, que nos rodeiam: “É preciso tocar os mais jovens, a partir de uma idade precoce, de modo a que as suas mentes sejam capazes de, com espírito crítico, olhar as imagens e aquilo que significam.”
Há, de facto, uma diferença entre respeitar a inteligência do espectador e, por exemplo, gastar preciosas horas televisivas a tratar o despedimento de um treinador de futebol como se fosse a antecâmara de uma guerra civil. E há, sobretudo, uma maneira, também ela pedagógica, de encarar o estado das coisas audiovisuais: para o melhor e para o pior, o nosso ecrã caseiro tornou-se um poderosíssimo instrumento educacional das nossas vidas e respetivos valores.
Pelo menos até agora, as comemorações dos 50 anos da nossa democracia têm omitido qualquer vontade de reflexão sobre tão dramática conjuntura, transversal a classes e gerações (e à história dos mesmos 50 anos). O que talvez ajude a identificar o efeito mais perverso da falta de literacia visual. A saber: a crença de que o mundo das imagens é o produto “natural” (e, nessa medida, inquestionável) do simples facto de alguém registar ou reproduzir imagens. Entretanto, todo os dias, a sensibilidade dos nossos olhares vai morrendo um pouco mais.
Jornalista
============2024 - OPINIÃO - Destaque (15073176)============
Há linguagens televisivas que promovem a indiferença, criando espectadores sem gosto de olhar e compreender.”
============2024 - Legenda (15092173)============