A minha obsessão
Esta história é engraçada. O aluno que vai ao exame de História e só sabe tudo sobre a Guerra dos 100 Anos. Quando o professor o interroga sobre as Guerras Púnicas, entre Roma e Cartago, ele agradece a pergunta e a sua importância, mas responde com convicção: “Senhor professor, essas guerras foram muito interessantes, cerca de 200 anos antes de Cristo, mas muito mais importante foi a Guerra dos 100 Anos entre França e Inglaterra que acabou no século XV.” E falou sobre esta guerra durante meia hora e passou com distinção! Assim estou eu em relação aos Centros de Referência (CR).
Estamos perante conflitos gravíssimos, com guerras em curso no Médio Oriente e na Ucrânia, temos o País lamentavelmente à beira de Eleições Legislativas antecipadas, e um grunho milionário à frente da maior potência mundial a querer conquistar a Gronelândia, e de que falo (escrevo) eu? Dos CR! Mas deixem-me mais uma vez explicar. O que são e o que representam os chamados CR?
Começam por ser uma das reformas estruturais que mais dignificam e prestigiam o nosso SNS, porque com a sua implementação pretendeu-se defender a qualidade da medicina praticada no nosso País em benefício dos nossos doentes. E porquê? Porque o tempo de todas as equipas médicas poderem tratar com competência todas as doenças acabou, ou devia ter acabado há muito. Para certas doenças raras ou muito graves e complexas, são necessárias infraestruturas, tecnologias e competências, que só podem ser reunidas por equipas multidisciplinares dedicadas. Que tenham casuísticas que permitam tratar com competência e possam formar novos profissionais.
Mas para que esta reforma tão importante seja efectiva no terreno é fundamental que haja coragem de conseguir impedir que nos nossos hospitais, nas áreas onde haja a necessidade de tratar os nossos doentes em CR, quem não seja competente esteja proibido de o fazer. Não há volta a dar, o termo PROIBIR é forte, mas só assim é possível defender os nossos doentes.
Fui durante muitos anos director de um CR para tratamento das doenças graves do fígado, das vias biliares e do pâncreas, incluindo a transplantação. A minha equipa multidisciplinar e multiprofissional (sim, os enfermeiros e outros técnicos são igualmente fundamentais), não era e não é competente para tratar doenças graves de outros órgãos. No nosso caso não foi necessário sermos proibidos de o fazer, tal como felizmente muitos outros CR e não só. Mas infelizmente não é essa a realidade actual no nosso SNS.
Proibir (impedir) quem não tem competências para tratar certas doenças de o fazer, é uma obrigação ética. Uma obrigação deontológica e uma obrigação moral. Estou obcecado? Talvez, mas o enorme respeito pelos nossos doentes assim me exige. Os CR são a minha Guerra dos Cem Anos!
PS - Em Portugal existem actualmente 112 CR para tratar muitas doenças raras e outras muito graves e ou complexas. Provavelmente demasiados nalgumas patologias, que precisam de ser auditados. E algumas áreas ainda não são contempladas. Não se pode ter um CR em cada esquina, e isso tem de ser explicado à nossa população, aos nossos autarcas e a quem dirige as nossas 39 Unidades Locais de Saúde. E a Ordem dos Médicos devia empenhar-se, publicamente e com convicção, em fazer da necessidade da existência dos CR, e do seu eficaz funcionamento, uma das suas principais bandeiras! Senhor Bastonário, é uma questão ética e deontológica!
Cirurgião.
Escreve com a antiga ortografia