A mediação entre a Ucrânia e a Rússia requer neutralidade e saber-fazer

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O arranque da mediação americana em Riade pouco mais foi do que um tiro de pólvora seca. A agenda ficou reduzida à segurança da navegação no Mar Negro e pouco mais. Mesmo essa questão foi tratada de modo vago, sem clareza quanto às regras que deverão ser seguidas, nem sobre quem verifica o acordo e como serão investigadas as possíveis violações. Não tem grandes hipóteses de se concretizar. De qualquer modo, neste momento é um assunto marginal para o alcance da paz na Ucrânia. Interessa sobretudo à Rússia, que vê aí uma via para voltar aos mercados dos produtos agrícolas e de fertilizantes, e para exercer pressão para conseguir um aliviamento de certas sanções, incluindo na área das transações financeiras.

Estamos muito longe de um cessar-fogo e do início de um processo de paz. É sabido que muitas das negociações de paz começam pelo tratamento de questões menores, laterais para o processo, mas importantes para criar confiança entre as partes. Riade não parece ter servido para isso. Por trás do espetáculo, levado a cabo por atores secundários por parte da Rússia e dos EUA - apenas a delegação ucraniana era de alto nível, por necessidade e para mostrar empenho -, continuamos a ter várias interrogações, poucas certezas e sérias dúvidas quanto ao êxito da iniciativa.

Quando a mediação é facilitada por quem está aparentemente convencido da validade dos argumentos de apenas uma das partes, o exercício não é objetivo, nem equilibrado. Mais parece um planar sobre uma presa que consideram de antemão condenada.

Sublinho, no entanto, alguns pontos que me parecem importantes. Os EUA de Donald Trump querem construir uma relação política de proximidade com a Federação Russa de Vladimir Putin. Trump e os membros do seu círculo de poder têm um estranho fascínio por Putin. Basta ouvir o que Steve Witkoff, o enviado especial americano para o Médio Oriente, disse sobre Putin, depois de o ter visitado duas vezes, para se constatar o deslumbramento que o avassalou e que é certamente partilhado pelo resto da equipa. É o embevecimento dos principiantes e dos amadores perante o jogador profissional. Defender a democracia e a estabilidade da Europa deixou de ser uma prioridade para Washington. É o enterro da Doutrina Truman, da Política Externa de apoio às democracias anunciada pelo presidente Harry S. Truman, a 12 de março de 1947.

Trump revelou, uma vez mais, que não reconhece a Europa como um ator importante. Telefonou ao líder dos Emirados Árabes Unidos para o informar do que se passara em Riade, mas não contactou nenhum dirigente europeu. Emmanuel Macron diz que fala frequentemente ao telefone com o presidente americano. Não sei se assim acontece. A verdade é que Washington não fez nenhum tipo de referência a um qualquer contacto com dirigentes europeus. Antes pelo contrário, Washington tem, nestes últimos dias, criticado abertamente a iniciativa de Macron e de Keir Starmer relativa à formação de uma força de paz, a destacar para a Ucrânia quando se conseguir um pacto de cessar-fogo. É uma iniciativa bem-intencionada, defendida por políticos que sabem que uma força assim demora tempo a organizar.

É, todavia, algo que nunca será aceite pela Rússia. Se um dia uma coligação desse tipo for destacada para a Ucrânia, terá sobretudo como missão garantir a segurança da parte ucraniana. Ao acontecer, acabará implicada no conflito, porque Putin não hesitará em atacar essa presença, inventando todo e qualquer pretexto que lhe pareça conveniente. Ou seja, sem um verdadeiro acordo entre as partes ucraniana e russa, algo que não creio que possa acontecer no futuro previsível, o envio de uma missão de paz não será viável, a não ser que se queira alargar o conflito a outros intervenientes. Essa extensão do conflito é, aliás, uma probabilidade real.

A Rússia quer continuar a agressão. Só parará os ataques quando, no mínimo, conseguir o reconhecimento internacional das ocupações ilegais da Crimeia e das quatro regiões que declarou, sem qualquer base legal, como territórios russos. Depois, mais tarde ou mais cedo, voltará ao ataque, porque Putin está convencido de que a Ucrânia deve ser integrada na Federação Russa ou seguir um modelo idêntico ao da Bielorrússia. É uma obsessão histórica irracional, herdeira do lado pior do sonho imperialista da Rússia. É isso que o grupo no poder em Washington não entende. Como também não compreende que nunca conseguirão criar um verdadeiro fosso entre o regime de Putin e o chinês.

Conselheiro em segurançainternacional.

Ex-secretário-geral-adjunto da ONU

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