Cruzei-me há dias com um excerto de uma entrevista de 1958 ao famoso filósofo Bertrand Russell, que tanta companhia me tinha feito na adolescência com os seus Problemas da Filosofia. Não era o meu livro preferido à época; lia, avidamente, Psicoptologia da Vida Quotidiana, de S. Freud. Mas Russell tornou-se uma espécie de distante tio a quem recorrer de vez em quando, mas que há muito não via. Nessa entrevista, Russell destaca dois testamentos que gostaria de deixar para aqueles que eventualmente aqui estarão daqui a mil anos. Um intelectual e outro moral. Para o testamento intelectual, Russell afirma que, quando alguém estiver a estudar qualquer assunto, deve perguntar-se a si próprio apenas quais são os factos e qual é a verdade que esses factos sustentam. Nunca se deixar desviar por aquilo que gostaria que fosse a verdade ou por aquilo que acha que deveria ter efeitos sociais benéficos se fosse acreditado. Olhar apenas e unicamente para aquilo que são os factos.No seu testamento moral, revela a máxima de que o amor é sábio e o ódio é néscio: “num mundo cada vez mais interconectado, temos de aprender a nos tolerar, aprender a conviver com o facto de que algumas pessoas dirão coisas de que não gostamos. Se quisermos viver juntos e não morrer juntos, deveremos aprender uma espécie de caridade e um tipo de tolerância que são absolutamente vitais para a continuação da vida humana”.As pessoas não ouviram nem leram Russell, obviamente. Os factos não são considerados ou são adulterados sob a capa da ideologia. Os factos, os acontecimentos, são interpretados à luz dos desejos pessoais ou ideológicos, não vistos como aquilo que são.Num mundo cada vez mais intolerante, anti-semita, anti-cristão, que defende invasores e não invadidos, que perdeu completamente a noção do que é justo, que só é tolerante perante aqueles que infligem medo e não como base de comportamento, que é forte com os fracos mas fracos com os fortes, em que o respeito e a tolerância deixaram de ser – se alguma vez o foram – valores a sustentar, as palavras do grande filósofo são um farol de bom-senso.Mas o nevoeiro é denso. E facilmente o que emana do farol será confundido com outras luzes que deslumbram outros interesses. Professora auxiliar da Universidade Autónoma de Lisboa e investigadora (do CIDEHUS).Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico