A lei, o medo e um PS pouco relevante

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A aprovação nesta terça-feira das alterações à Lei dos Estrangeiros consolida a viragem na política migratória portuguesa iniciada pelo governo de Luís Montenegro - a política de controlo e seletividade na entrada de imigrantes. O Chega, que fez da “remigração” - deportação em massa de estrangeiros - a sua bandeira, pôde reivindicar parte da vitória. O PSD chamou-lhe “uma vitória dos portugueses”.

A lei tem um propósito claro: travou-se o fluxo descontrolado de entradas à procura de regularizações fáceis, através das antigas “manifestações de interesse” e de um acumular de centenas de milhares de processos pendentes herdados de um sistema que, por falta de meios do antigo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, foi incapaz de responder ao gigantesco volume de pedidos.

Era preciso agir porque o país não podia ficar refém de um discurso hipocritamente humanista que abria as portas, alimentando redes criminosas e atirando muitos imigrantes para uma vida degradante, num limbo de existência, enquanto esperavam pelos documentos.

No entanto, subsistem algumas dúvidas sobre a coerência e a sustentabilidade da solução. Qualquer país soberano tem o direito - e o dever - de decidir quem entra ou não entra no seu território. Essa prerrogativa faz parte da soberania do Estado e deve ser exercida no respeito pelos tratados internacionais, nomeadamente no acolhimento de refugiados e na proteção de quem foge de perseguições ou de guerra. O problema não está em querer regras, mas em confundi-las com uma desconfiança sistemática. Um Estado verdadeiramente soberano é aquele que decide com racionalidade e justiça, mas, para isso, é preciso que os organismos que trabalham neste setor - a AIMA e as forças policiais, sobretudo - tenham meios para o garantir.

Ao restringir o visto de procura de trabalho apenas a profissionais altamente qualificados e ao endurecer o reagrupamento familiar, o Governo redefiniu o que entende por “imigração regulada”. Fica por esclarecer, porém, como o país continuará a garantir trabalhadores para os setores que mais deles precisam - a construção civil, a hotelaria, a agricultura e os cuidados de saúde. Uma política migratória é também um plano de recrutamento e integração que sustente a economia e a coesão social.

Foi este o maior fracasso do PS, a vulnerabilidade que lhe retirou moral para ter uma palavra que conte nesta matéria. Quando teve essa oportunidade, foi o principal responsável pelo modelo que gerou o descontrolo migratório. Tentou agora corrigi-lo, mas faltou-lhe a autoridade política para impor a sua visão. O governo preferiu negociar à direita e o espaço da moderação ficou vazio: a esquerda denuncia xenofobia, a direita fala em controlo e segurança, e o PS, mesmo tendo tentado um caminho de responsabilidade, acabou sem influência real no resultado final.

José Luís Carneiro tentou recuperar espaço, negociando até à última hora. Quis alargar o visto de procura de trabalho a setores essenciais e reduzir de dois para um ano o prazo do reagrupamento familiar. Nenhuma proposta foi aceite. O governo preferiu fechar o acordo com o Chega e o PS ficou, mais uma vez, à margem: ético no discurso, irrelevante na decisão.

O que se inverteu não foi a vontade, mas a capacidade de liderança. O partido que durante anos definiu a política migratória portuguesa perdeu o domínio do tema e viu a sua narrativa substituída pela urgência de mostrar autoridade - uma urgência que ele próprio ajudou a criar, ao deixar o sistema degradar-se sem resposta estrutural.

Mas a gravidade do que está em causa vai além da disputa partidária: é a qualidade moral e a capacidade de resposta do Estado. Como recordou aqui no DN a jurista Ana Rita Gil, membro do Conselho Nacional para as Migrações, órgão consultivo do Governo, há hoje uma linha ténue entre aplicar a lei e abdicar da humanidade. Os casos de cidadãos detidos por erro no sistema Schengen, mães deportadas enquanto aguardam decisões que o próprio Estado não consegue emitir, e famílias separadas por burocracias incompreensíveis, mostram um país que cumpre formalmente a lei, mas falha na justiça concreta. Portugal corre o risco de se tornar um Estado automatizado, que confunde zelo com crueldade.

Quando afasta deliberadamente um PS que tenta corrigir erros e fazer parte da solução, o PSD assume que, no final do dia, é o discurso do medo que segue. O Chega impôs o discurso do medo e da força. A esquerda refugiou-se na indignação. O centro responsável ficou vazio. Assim como continuará vazio enquanto a política insiste em criar e alimentar medos em vez de, simplesmente, governar com decência para todos os que cá vivem e para todos os que escolheram Portugal para viver.

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