Num Estado de direito democrático, ninguém está acima da lei. Este princípio aplica-se com especial rigor a quem exerce funções públicas. A Constituição da República Portuguesa estabelece, no artigo 266.º, n.º 2, que “os órgãos e agentes da Administração Pública estão subordinados à Constituição e à lei e devem atuar com respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos”. Isto significa que qualquer titular de cargo político ou administrativo está juridicamente vinculado a cumprir e a fazer cumprir a lei, não podendo substituí-la por convicções pessoais ou por considerações de oportunidade.O Estatuto dos Eleitos Locais (Lei n.º 29/87, de 30 de junho, artigo 4.º) acrescenta que os autarcas devem exercer o cargo “com respeito pela Constituição e pelas leis” e “com isenção e imparcialidade”. A margem de autonomia política não elimina o vínculo à legalidade.A recente polémica em torno da Polícia Municipal de Lisboa (PML), que o DN tem amplamente noticiado, ilustra este princípio em tensão. O presidente da câmara municipal disse ter ordenado aos agentes que efetuassem detenções, prática considerada sem base legal pela Procuradoria-Geral da República (Parecer de outubro de 2024). A Lei n.º 19/2004, que define o regime das polícias municipais, é clara: estas não são órgãos de polícia criminal, apenas podendo deter em flagrante delito e devendo, nesse caso, entregar imediatamente o detido à autoridade competente.Em reação à notícia de que antes do parecer da PGR o próprio ministério da Administração Interna tinha um outro da sua auditoria jurídica, no mesmo sentido, Moedas persistiu no discurso público de que continuará a incentivar a Polícia Municipal a fazer “tudo, tudo, tudo” para garantir a segurança dos lisboetas. Sem qualquer autocrítica que se impunha, o autarca ainda veio reforçar a sua tese: “Que se mude a lei. Eu peço ao Governo para mudar a lei (…) acho absolutamente ridículo que um polícia municipal, se vir alguém a cometer um crime, não possa deter essa pessoa e tenha de ficar no meio da rua à espera da PSP”.Desta forma, o autarca coloca-se, assim, numa posição delicada: entre o dever de respeitar a lei vigente e a tentação de privilegiar resultados imediatos de ordem pública. Não está em causa a legitimidade do debate político sobre o reforço das competências municipais. Moedas tem toda a legitimidade para defender que a PML deve poder prender pessoas e que a lei deve ser alterada; não pode é criar uma situação ambígua que possa levar a que algum agente viole a lei, e muito menos dar ordens nesse sentido. O que está em causa é a atitude de ignorar a lei em vigor enquanto ela não muda, algo incompatível com o cargo público.O Código do Procedimento Administrativo (artigo 3.º) recorda que a atividade da Administração deve respeitar a legalidade, atuando “em conformidade com as normas jurídicas aplicáveis”. Um presidente de câmara, enquanto órgão da administração local, está sujeito a este princípio. Mais: ordens manifestamente ilegais não devem sequer ser executadas pelos subordinados, sob pena de responsabilidade disciplinar ou criminal.Se um autarca manda praticar atos que a lei não permite, não apenas se expõe a si próprio a responsabilidade, como coloca agentes municipais numa situação de vulnerabilidade. Este risco já teve efeito: a Inspeção-Geral da Administração Interna abriu inquérito e o Ministério Público investiga alegadas detenções ilegais praticadas pela PML.O dilema entre segurança e legalidade é antigo. Há quem entenda que “os fins justificam os meios” e essa narrativa ganha vigor recorrentemente em contextos em que a insegurança está no discurso público. Mas num Estado de direito, a lei é precisamente o limite que impede abusos de poder em nome de causas momentaneamente populares e populistas.O artigo 272.º da Constituição é explícito: a polícia visa “defender a legalidade democrática e garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos”. Defender a legalidade democrática significa que a própria polícia - e quem a dirige politicamente - não pode atuar fora da lei. A segurança dos cidadãos não se assegura contra a lei, mas através dela.Quando um responsável público transmite a ideia de que a lei pode ser contornada porque é “má” ou “mal feita”, abre-se um precedente perigoso: o de que cada titular de cargo pode escolher quais normas respeitar. Esse caminho mina a confiança nas instituições e fragiliza a democracia.Nada impede um autarca de propor mudanças legislativas e de pressionar politicamente por elas. É legítimo e até desejável que o faça. O que não lhe é permitido é, enquanto a lei não muda, dar ordens contrárias ao direito vigente.O caso da PML não é apenas um debate técnico sobre competências policiais. É sobretudo um teste à solidez do princípio de legalidade. Titulares de cargos públicos não são meros intérpretes criativos da lei: são os primeiros obrigados a cumpri-la.A Constituição determina que toda a Administração Pública está subordinada à lei. Esta é a base da confiança democrática. Quando um responsável político trata a legalidade como obstáculo descartável, fragiliza não apenas a sua posição, mas também o próprio Estado de direito.A lei pode e deve ser discutida. Mas até que mude, é inegociável.