Pessoas ideologicamente tão diferentes, de André Ventura a Miguel Sousa Tavares, utilizam frequentemente um argumento semelhante a este: “grande parte das leis laborais são do tempo do PREC”, que é como quem diz “cheiram a comunismo” e, por isso, há que substituí-las por algo “mais moderno”. Tenho muita pena que não seja assim, mas, na verdade, não há aroma de comunismo nas leis laborais que estão em vigor. A legislação laboral foi toda redesenhada em 2002 por um homem do CDS-PP, Bagão Félix, e negociada em concertação social por ele e por um secretário de Estado do Trabalho desse governo de Durão Barroso, Luís Pais Antunes. O próprio Bagão Félix explicou, num livro que escrevi em 2022 para o Conselho Económico e Social, que antes do “seu” pacote laboral havia uma grande confusão jurídica “por toda a legislação laboral estar dispersa em mais de 60 diplomas e com algumas contradições entre eles, com omissões, com leis que vinham ainda do Estado Novo, outras leis que resultaram da febre do pós-25 de Abril, muito emocionalizadas do ponto de vista político”. Foi, portanto, para acabar com a “emoção abrilista” que essa legislação foi produzida, apoiada em concertação social pelo patronato e pela UGT. Aí foram feitas duas grandes alterações estruturais, que entraram em vigor em 2003: introduziu-se a caducidade nos contratos colectivos de trabalho e eliminou-se o princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador. Passo a explicar: Antes de 2003, os contratos coletivos de trabalho duravam até serem substituídos por novos. Depois disso, passaram, ao fim de algum tempo, a poder ser denunciados mesmo sem haver novo contrato para os substituir. Isto, na prática, deu ao patronato o poder para negociar a contratação coletiva apenas no tempo e nos sectores de atividade que lhe conviessem, bastando, para isso, denunciar o contrato em vigor e, depois, deixar de falar com os sindicatos, impedindo a negociação de um novo contrato. A partir daqui muitos trabalhadores ficaram à mercê do que cada gestor, em cada empresa, decidisse fazer — isto é radicalmente “liberal” e de “mercado livre”, dando um enorme poder discricionário, por via indireta e engenhosa, às empresas. Antes de 2003, se houvesse uma contradição entre uma lei, uma convenção coletiva ou um contrato individual de trabalho, aplicava-se a norma que fosse mais favorável ao trabalhador. A partir de 2003, passou a haver uma lista de algumas normas em que esse princípio se aplica (por exemplo, não discriminação sexual ou racial, salário mínimo, regime de despedimento individual, etc.), mas em questões centrais como mobilidade, pagamentos de prémios ou subsídios, organização de horários e muitas outras, isso já não acontece. As alterações de 2009 ao código de 2003, na substância, deixaram permanecer estes regimes. E a continuidade posterior foi, aliás, um dos fracassos da “geringonça” e, depois, um bloqueio deliberado do Governo PS absoluto de António Costa.Ao contrário do que se diz, a legislação laboral em vigor não é uma legislação de esquerda. É uma legislação de direita, pensada para eliminar “a febre do pós-25 de Abril” que Bagão Félix “diagnosticou” e “curou”, enquadrada com o espírito dominante na União Europeia. O que este Governo agora pretende com o seu pacote laboral, provocando uma greve geral conjunta da CGTP e da UGT, é uma nova febre — talvez uma tardia e ideológica “febre de 25 de Novembro”. Jornalista