Vivemos assombrados por um novo sistema de revisionismo cultural. O seu poder afeta todas as nossas relações com os objetos artísticos (e, no limite, todas as relações humanas), sendo especialmente ativo na perceção corrente do cinema e dos filmes. No interior da sua lógica, o passado está sempre errado - ontologicamente errado..Persiste uma adoração beata da tecnologia, classificando tudo o que é "antigo" como tosco, caricato e irrelevante, mas o efeito ideológico mais forte desse sistema apela à "necessidade" de censurar os clássicos em função de modelos maniqueístas de valoração enraizados no presente. Tais modelos são mesmo promovidos como verdades universais e intemporais que, na mais festiva ignorância, rasuram todas as componentes específicas (artísticas, culturais, políticas, industriais, simbólicas, etc.) da gestação de cada filme..São fenómenos de todos os dias que estão a consolidar uma nova cultura social, porventura uma nova sociedade, em que a relação com a arte deixou de ser uma relação com as incertezas, dúvidas ou contradições do próprio objeto artístico. Tal relação tende a esgotar-se em fenómenos de um policiamento que nem sequer é narrativo (podia, apesar de tudo, ser a tentativa de definir uma nova estética), mas banalmente "temático" e moralista. A sua ação quotidiana só pode contribuir para a consolidação de um público juvenil cada vez mais alheado das infinitas perturbações, e também da pluralidade da beleza, que um gesto artístico pode conter ou iluminar..Infelizmente para todos os nós, estas palavras de Susan Sontag, num texto sintomaticamente intitulado Uma cultura e a nova sensibilidade, mantêm uma radical atualidade: "Uma grande obra de arte nunca é simplesmente (ou mesmo principalmente) um veículo de ideias ou de sentimentos morais. É antes de mais nada um objeto que modifica a nossa consciência e sensibilidade, mudando a composição, ainda que apenas ligeiramente, do húmus que alimenta todas as ideias e sentimentos específicos. Humanistas escandalizados, por favor tomem nota. Não há razão para alarme. Uma obra de arte não cessa de ser um momento da consciência da humanidade, quando a consciência moral é entendida apenas como uma das funções da consciência" -- importa acrescentar que são palavras escritas em 1965 (Contra a Interpretação e outros ensaios, tradução de José Lima, ed. Gótica, Lisboa, 2004)..Entre os resistentes a este estado de coisas estão os arquivos fílmicos de todo o mundo -- incluindo da Cinemateca Portuguesa, cujo importante labor de muitas décadas (antes e depois do 25 de Abril) não pode ser reduzido aos lugares-comuns dos nacionalismos "culturais" que passaram a ocupar o nosso espaço mediático. Notícia recente, vinda dos EUA, dá conta de uma variante muito particular do trabalho de preservação e partilha dos clássicos. A saber: a 14.ª edição, em Hollywood, do TCM Classic Film Festival..Ligado ao canal TCM (Turner Classic Movies), infelizmente desativado em vários países europeus, incluindo Portugal, o festival apresenta-se como uma fascinante montra de títulos clássicos, celebrando as respetivas heranças: "Trabalhamos diretamente com os estúdios de Hollywood, os magníficos arquivos fílmicos de todo o mundo e também colecionadores privados, de modo a dar a ver alguns dos mais venerados filmes de sempre, a par de preciosidades esquecidas, muitas em deslumbrantes novos restauros." Uma parte significativa deste trabalho resulta da colaboração com a Film Foundation, fundada por Martin Scorsese -- regularmente, no respetivo site [film-foundation.org] é possível ver, gratuitamente, algumas das cópias restauradas com o seu apoio..CitaçãocitacaoComo combater o revisionismo cultural? No caso do cinema, importa cultivar a memória dos clássicos..No dia 14, a abertura do festival foi feita com a apresentação da nova cópia de um clássico do western: Rio Bravo (1959), de Howard Hawks, com John Wayne, Dean Martin, Angie Dickinson, Ricky Nelson e Walter Brennan. Além de Angie Dickinson, 91 anos (inesquecível na personagem de Feathers), estiveram presentes Steven Spielberg e Paul Thomas Anderson, dois dos cineastas mais ativos nos projetos da Film Foundation..Na sua odisseia de resistência, o núcleo de personagens de Rio Bravo envolve uma teia dramática que também não é estranha aos sobressaltos da passagem do tempo. Assim, se John Wayne, figura emblemática de vários títulos de Hawks (e também de John Ford), representa o envelhecimento em que o próprio cineasta se projeta (Hawks viria a falecer em 1977, contava 81 anos), Ricky Nelson, 18 anos na altura da rodagem, era já um nome muito popular no universo do "country rock" -- faleceu em 1985, contava 45 anos, num desastre de avião. Em Rio Bravo, ele é o jovem discípulo confrontado com a entrada num universo de solidariedade cujas leis apenas começa a compreender..Jornalista