A Justiça não está acima do escrutínio

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Sendo tema da ordem do dia a nomeação de uma nova personalidade para procurador-Geral da República (PGR), é importante refletir e debater questões que lhe respeitam e também ao Ministério Público (MP).

A atual PGR, Lucília Gago, na primeira entrevista que deu ao fim de seis anos, declarou que estava em curso uma “campanha orquestrada” contra a sua pessoa e o MP, mas questionada na audição que teve na Assembleia da República (AR), não identificou a razão da afirmação, nem quem estava envolvido na referida “campanha”.

No início de setembro, na posse de novos procuradores-Gerais Adjuntos, fez outra declaração em que estranha “o súbito e o muito recente interesse que a atividade do MP, na sua globalidade, aparenta hoje despertar”, o que não corresponde à realidade porque há anos que existem incontáveis contributos sobre a Justiça e o MP, desde logo nas intervenções muito difundidas a partir de um Colóquio, com o título Justiça em crise ou crise na Justiça, coordenado por António Barreto, e editado há 24 anos (!), que, entre outros, integra um texto crítico de Freitas do Amaral.

Esse interesse persistiu, com contributos diversificados e também agora num recente Manifesto, subscrito por 50 cidadãos, muitos deles publicamente reconhecidos, com variadas opções religiosas, profissionais e filiações partidárias, a que tive a honra de aderir.

As referidas contribuições destinam-se a melhorar a Justiça e, naturalmente, a ação do Ministério Público, que tem uma estrutura hierarquizada, com subordinação dos magistrados às ordens, instruções ou diretivas dos seus superiores.

Neste domínio, a reflexão é tanto mais natural quanto é certo que a atual PGR exarou um despacho sobre a subordinação hierárquica, de que o Sindicato interpôs recurso junto do Supremo Tribunal Administrativo e que há anos aguarda que seja proferido acórdão.

O cumprimento das regras da hierarquia, de par com o alcance do conceito de autonomia do MP, que jamais se pode confundir com independência própria dos juízes, não pode, no mínimo, deixar de ser objeto de debate.

A infelizmente débil participação cívica da sociedade civil em Portugal mais justifica a compreensão e o interesse de iniciativas que promovam o debate sobre matérias que integram funções soberanas do Estado.

Qualquer análise crítica jamais poderá ser considerada fulanizada, tendo sido desejável que magistrados do MP, enquanto tais, se tivessem envolvido ou se envolvam no debate.

Partilho, por todas as razões, o conteúdo da parte da entrevista concedida ao jornal Público por um antecessor da atual PGR, Cunha Rodrigues, que refere “não se poder falar de campanhas e muito menos orquestradas”, acrescentando ser “legítimo o escrutínio ao Ministério Público”.

No seu entendimento, as regras da hierarquia devem ser repostas e, a existirem duvidas, elas atualmente só podem ser imputadas à legislação em vigor, como se resulta da entrevista.

Na verdade, a salvaguarda dos poderes legislativo, executivo e judicial, é uma pedra de toque de todos os responsáveis destes três poderes.

Porque na recente audição na Assembleia da República Lucília Gago não respondeu à pergunta que lhe formularam, sobre quem integrava a “campanha orquestrada” contra a própria e o MP, fica-se sem saber se essa campanha envolve também a ministra da Justiça, Rita Júdice, que invocou ter o próximo PGR de “arrumar a casa”, o que conduziu a PGR a ficar “perplexa e surpresa”, ou outras personalidades familiarizadas com a Justiça.

A imagem da Justiça, uma mulher com venda nos olhos, garante da imparcialidade, tendo numa das mãos uma balança, referência ao equilíbrio e noutra uma espada, que assegura a aplicação da lei, está mesmo muito fragilizada por múltiplas causas e também por factos com forte impacto público a que importa responder com medidas concretas e que salvaguardem direitos fundamentais dos cidadãos.

Refiro-me, por exemplo, aos espetáculos mediáticos para cumprimento de mandados de busca que fazem manchetes na comunicação social, expondo na praça pública cidadãos que legalmente gozam da presunção de inocência e que sofrem danos pessoais e familiares irreparáveis, sem que haja necessidade de os relembrar por serem sobejamente conhecidos.

A violação do segredo de justiça tornou-se uma banalidade e escutas telefónicas sem causa, independentemente do período que abrangem, uma só que fosse, não diminui a gravidade quando nada sucede ao fim de quatro anos, por exemplo, salvo o anómalo e as consequências que resultam das transcrições delas na comunicação social.

A gota de água que, aliás, impulsionou o Manifesto dos 50, teve por base um desses processos, em que num parágrafo se alega a suspeição de eventuais ilícitos, que estimularam a queda de um Governo com maioria absoluta, mas que um procurador-Geral Adjunto acabaria, mais tarde, publicamente por afirmar não ter a suspeição suporte em factos.

Inabitual é que Lucília Gago, enquanto PGR, sustente que, após o “MP fazer o seu trabalho não tenha mais que se preocupar com as consequências” ainda que as mesmas, alegadamente fundamentadas na igualdade dos cidadãos perante a lei, envolvessem um primeiro-ministro (de qualquer partido que fosse, digo eu), concluindo-se, a final, num acórdão do Tribunal da Relação, produzido em recurso na chamada Operação Influencer, que nenhuma consequência penal tinha lugar para a personalidade sob suspeita.

É natural que neste quadro os cidadãos se interessem pelo perfil do próximo PGR.

Não estabelecendo a Constituição, como a legislação ordinária, restrições à nomeação, inclusive quanto à formação académica do PGR, salvo critérios de razoabilidade e, repescando de novo declarações de Cunha Rodrigues, dir-se-á que o próximo PGR deverá “ter mundo e bom senso”.

Concordando com esta declaração, a realidade parece aconselhar dever ser uma personalidade reconhecida como garante da salvaguarda dos direitos fundamentais do cidadão, não se descurando que o processo de indigitação não se deve limitar à indicação do nome por parte do Governo e à nomeação por parte do PR.

O envolvimento da participação da AR em termos a refletir e pelo que esta representa, como órgão de soberania do povo português, parece dever ser tido em conta.

Além do mais, regista-se que nos últimos tempos e coincidentemente os partidos representados na AR, exceto o Chega, reconhecem a necessidade da adoção de medidas que contribuam para o reforço da fragilizada imagem que os cidadãos têm da Justiça.

Existindo condicionalismos constitucionais para a envolvência da AR antes da formalização da nomeação, o nomeado poderá ser solicitado a comparecer na primeira Comissão para esclarecer o país sobre os objetivos que se propõe desenvolver durante o seu mandato.

Dito tudo isto, é desejável e saudável que se fale da Justiça como se fala de outros temas do Estado.

A Justiça não está mesmo acima do escrutínio.

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