A Justiça lida bem com o escrutínio?

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Há dias, a propósito de mais uma trapalhada da justiça relacionada com escutas na Operação Influencer, revelada pelo DN, diziam-me que isto era mais uma prova de que os juízes, procuradores e magistrados “andam em roda livre”, sem nenhuma entidade própria ou externa que fiscalize a sua atividade. Não sou dessa opinião e creio mesmo que é um mau princípio pensar em coarctar, de alguma forma, a independência que lhes concede as regras do Estado de Direito. Mesmo com todas as polémicas recentes e passadas, o poder judicial deve ter margem e liberdade para trabalhar. 

Isso não quer dizer, em primeiro lugar, que ache que tudo está bem no funcionamento da justiça em Portugal. Não está. A existência de mega-processos que se arrastam por uma década; a pendência de processos nos tribunais, sobretudo dos tribunais administrativos; as “portas-giratórias” entre os grandes escritórios de advogados e os grupos parlamentares e governos; a ausência de uma instância especialmente dedicada à corrupção e aos crimes de colarinho branco (como existe em Espanha) são temas que preocupam e que deveriam receber maior atenção da sociedade civil e ainda maior escrutínio da imprensa.

Mas a defesa acérrima da independência dos procuradores, juízes e magistrados não deve impedir a nossa consciência de questionar se há ou não agentes da justiça com ódios e amores que acertam ou exacerbam nas suas diligências. Se há ou não magistrados e juizes com agendas alinhadas com forças políticas ou lóbis. Se há ou não mais do que coincidências nos “timings” da Justiça, nas fugas de informação seletivas aos jornais ou na oportunidade das buscas das polícias de investigação.

Há outra questão, de igual importância, que se coloca. É a de saber como a Justiça lida com esse escrutínio, com a própria ideia de que tem de prestar contas, aos cidadãos e aos seus representantes. A história recente não pinta o quadro mais favorável.

Tomemos o exemplo o tema que faz a manchete desta edição do DN. A cada dois anos, a Procuradoria Geral da República tem de elaborar um relatório sobre a execução da Lei de Política Criminal. Tem de o fazer e entregá-lo à Assembleia da República até meados de outubro. É a definição, em poucas palavras, da prestação de contas ao poder político. Em 20 anos, desde que existe uma lei que assim a obriga, a PGR nunca entregou esse documento, crucial para avaliação política, a tempo e horas. Este ano não foi exceção (o relatório anterior, previsto para outubro de 2022, só foi entregue um ano depois).

A PGR justifica (mais) este atraso com “limitações técnicas”, que obrigam os seus serviços à “consulta direta de centenas ou milhares de inquéritos para garantir a fiabilidade dos dados”. Das duas uma, ou o próprio parlamento incluiu na lei um conjunto de alíneas que tornam impossível ao Procurador cumprir os prazos estipulados, ou estamos na presença de uma demonstração cabal de como a Justiça e os seus tempos não estão, de todo, alinhados com a prestação de contas aos outros poderes. 

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