Orlando Ribeiro, não apenas o grande geógrafo, mas um dos grandes escritores do século XX, artífice da análise fulgurante sobre a base multifacetada da identidade territorial e humana que caracteriza Portugal, dedicou o seu livro fundamental Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico “aos camponeses, pastores, moleiros, almocreves, pescadores e gente de outros ofícios, pela maior parte já desaparecidos”. Os antigos diriam que é a grei que aqui se recorda, e Camões sublinhava que “deram mundos ao mundo”. A grande originalidade deste mestre, que soube ligar as humanidades ao espírito científico, foi cultivar as ações de campo, caminhar incansavelmente por montes e vales, entre as cidades e as serras, ouvir as pessoas, como fizera o seu mestre José Leite de Vasconcelos. “Na mistura da gente e da vegetação, assim como na variedade das combinações e matizes regionais, reside o segredo da unificação portuguesa. Áreas próximas e muito diferentes, faltam-lhes todavia condições de vida próprias. Que seria do Norte superpovoado se lhe houvessem estancado a emigração? Que seria do ‘celeiro’ alentejano se as regiões de população densa lhe não consumissem os produtos da terra?”. José Mattoso recordou a anedota que se conta do rei D. Luís quando perguntou do seu iate a uns pescadores com quem se cruzou se eram portugueses. A resposta foi bem clara: “Nós outros? Não meu Senhor! Nós somos da Póvoa de Varzim”. E Alexandre Herculano dizia “somos porque queremos, seremos enquanto quisermos”, baseando-se no critério da vontade. E, para todos, o Mar constituiu um poderoso fator agregador.Há pouco, no que a Academia das Ciências de Lisboa designou como uma Festa da Geografia, foi homenageada Suzanne Daveau, viúva de Orlando Ribeiro, no seu centenário. Cientista incansável, é uma referência não só pelo que estudou, mas também pelo trabalho realizado na reunião do espólio e dos inéditos do mestre. A Fundação Gulbenkian publicou Mestres, Colegas e Discípulos, que reúne numerosos textos de Orlando Ribeiro de teor biográfico e bibliográfico que dedicou à personalidade e às obras dos seus mestres, colegas e discípulos. É uma leitura atraente que nos traz a presença de uma plêiade extraordinária, desde José Leite de Vasconcelos até Gago Coutinho.Através deste percurso, podemos compreender bem o testemunho vivo de alguém que pôde reunir em si os contributos dos maiores da geração que o antecedeu. Ao recolher estas memórias, Suzanne Daveau não apenas deixou o seu contributo como grande geógrafa, mas igualmente deixou clara a importância da obra inovadora e perene de seu marido.Em maré de centenários e em lembrança da importância da Geografia, lembro outra figura fundamental que tem ensinado tudo o essencial sobre o território e a identidade. Trata-se de Raquel Soeiro de Brito, que tanto tem contribuído para o conhecimento da nossa realidade. Longe de qualquer perspetiva fechada ou isolacionista, só com o conhecimento rigoroso da evolução e das condicionantes históricas, permitirá compreendermo-nos, com recusa das simplificações redutoras. “Um geógrafo precisa de ver o mundo pelos seus olhos. É preciso ter a capacidade – que nem toda a gente tem – de ver e de ouvir, para poder ser investigador”. Esta é a chave para que uma intervenção seja relevante. O conhecimento do território e das pessoas constitui base para a compreensão da unidade e da diversidade, para podermos lidar com o complexo e o universal da humanidade.Presidente do Conselho das Artes do Centro Nacional de Cultura