A imigração entre sombras e identidades

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O governo aprovou recentemente, com o apoio da extrema-direita, um pacote de medidas para controlar a imigração. O anúncio fez apelo a um Estado firme, finalmente capaz de erguer barreiras e dar resposta às ansiedades difusas da sociedade. Mas por trás da retórica, esconde-se a realidade incómoda, pois parte essencial do fenómeno migratório fica de fora. O que se varre para debaixo do tapete é a imigração informal, invisível, sem documentos, entregue a máfias e a patrões sem escrúpulos que exploram mão de obra barata e descartável.

A economia portuguesa depende cada vez mais desta presença oculta. Nos campos agrícolas, na restauração, na construção civil, no apoio a idosos, os rostos anónimos de trabalhadores sem contrato mantém a engrenagem a baixo custo. O grande regulador da imigração, longe de ser o Estado, é o mercado, apenas formal na aparência e profundamente informal na prática.

A hipocrisia passa por carimbos oficiais, que garantem uma aparência de formalidade a processos que roçam a ilegalidade. Documentos falsos, “lavados” com selo consular, circulam em Portugal com a ajuda de intermediários que operam como corporações respeitáveis, mas cujo procedimento pouco difere das máfias de tráfico humano, onde o crime se mascara de burocracia.

Milhares de pessoas vivem no país sem nacionalidade reconhecida, sem papéis e sem estatuto legal. Deportá-las é impossível e identificá-las é difícil, pois muitos deles nem nacionalidade possuem. O Estado limita-se a olhar para o lado, enquanto o problema se agrava.

Perante este quadro, o governo insiste em respostas curtas, feitas de slogans e acordos circunstanciais. Contudo a realidade exige coragem para uma identificação geral e universal de todos os que vivem e trabalham em Portugal, através de um sistema de identidade digital biométrica para imigrantes, integrando cidadãos estrangeiros nos mesmos instrumentos usados pelos nacionais, com cartão de cidadão adequado, chave móvel digital e a app Gov.pt.

Esta medida acabaria com a invisibilidade de milhares de pessoas, assegurando direitos básicos e cortando oxigénio às máfias e às redes de falsificação. Os benefícios são a transparência, a justiça social, a segurança jurídica e a igualdade. Só fará sentido se for também um mecanismo de integração e não apenas de vigilância. O desafio político está em equilibrar controlo e dignidade, mostrando que a presença de imigrantes pode ser organizada e justa.

Ignorar esta realidade é continuar a alimentar a insegurança que dá fôlego à extrema-direita populista. Quando o Estado finge que controla, o espaço é ocupado pelo medo e pelo ódio. O “outro” torna-se o bode expiatório e a justificação para discursos xenófobos que corroem a democracia.

O impacto político já se sente, sobretudo no poder local. Nas eleições autárquicas, o tema da imigração tornou-se terreno fértil para o crescimento da extrema-direita, que capitaliza medos, rumores e casos isolados. Em freguesias e municípios onde a presença de comunidades imigrantes é mais visível, o discurso securitário ganha tração. Os partidos tradicionais, ao não apresentarem soluções sérias, abrem caminho a forças radicais que fazem do medo a sua principal arma eleitoral. Cada bairro degradado ou tensão social não resolvida transforma-se em palco de propaganda.

Portugal precisa de lucidez. A pergunta não é se precisamos de imigrantes, pois essa resposta é dada todos os dias pelo mercado de trabalho. A questão é se queremos continuar a viver entre sombras, com informalidade e hipocrisia ou se teremos finalmente a coragem de assumir uma política migratória baseada em regras claras, identificação universal e dignidade. Porque no silêncio e na omissão cresce o extremismo e o resultado vê-se cada vez mais nas urnas nacionais e locais.

Especialista em governação eletrónica

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