A ilusão do combate à corrupção 

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A política contemporânea tornou-se um palco de indignação performativa. O populismo apresenta-se como guardião da moral e da justiça, empunhando a bandeira da luta contra a corrupção e prometendo varrer “os podres do sistema”. Mas por trás desse teatro esconde-se o esvaziamento do debate democrático, a intoxicação da confiança pública e a substituição da política por uma catarse de raiva.

Denunciar a corrupção é essencial, pois ela mina as instituições e fragiliza as democracias. Contudo, o populismo não a combate, instrumentaliza-a e vive à sua sombra. Escolhe alvos convenientes, poupa aliados e reduz o fenómeno a uma luta moral entre “os puros” e “os corruptos”. Ora a corrupção não é apenas uma falha ética individual, mas um problema sistémico, alimentado por opacidade institucional, promiscuidade entre público e privado e fracos mecanismos de regulação e fiscalização.

O populismo vive desta simplificação. Ao reduzir a política a um ringue dos bons contra os maus, substitui a razão pela fúria e transforma críticos em cúmplices do “sistema”. Neste clima, a perceção da realidade desaparece e com ela a possibilidade de reformas sérias. Pois combater a corrupção a sério exige enfrentar interesses instalados, rever práticas enraizadas e criar instrumentos eficazes de controlo.

Não basta a retórica moralista, é preciso aplicar soluções que tornem a corrupção mais difícil e arriscada. Plataformas digitais de contratação pública permitem escrutinar contratos em tempo real. Agendas políticas abertas expõem encontros e interesses. Registos imutáveis em blockchain impedem adulterações. Algoritmos de inteligência artificial detetam padrões suspeitos em concursos e fluxos financeiros. Portais de dados abertos colocam a informação nas mãos dos cidadãos, reforçando o escrutínio público.

Por exemplo, na Estónia, mais de 99% das interações com o Estado decorrem online e ficam registadas automaticamente. A contratação pública é monitorizada em plataformas abertas, reduzindo favoritismos. Sempre que um funcionário acede a dados de um cidadão, este é notificado, criando rastreabilidade e desencorajando abusos. O resultado é um dos níveis mais baixos de corrupção, alcançado não com discursos inflamados, mas com tecnologia aplicada com rigor e continuidade.

O que falta em muitos países não é conhecimento, mas vontade política para adotar mecanismos semelhantes. O populismo evita este debate porque as soluções tecnológicas exigem investimento, cooperação institucional e paciência democrática, precisamente aquilo que não cabe em slogans virais.

Quando é mal concebida, a tecnologia pode obscurecer em vez de iluminar ou ser capturada por quem deveria ser vigiado. Por isso, tem de ser acompanhada de legislação robusta, literacia digital e cultura democrática. Bem usada, transforma-se em barreira objetiva contra práticas corruptas, reduzindo o espaço para arbitrariedades.

O combate à corrupção não precisa de justiceiros de megafone, mas de sistemas transparentes e auditáveis, de dados que falem mais alto do que os boatos, com mecanismos automáticos que tornem a manipulação mais difícil e longe do espetáculo moralista.

A simplificação maniqueísta é sedutora porque oferece respostas fáceis a problemas complexos. No entanto é perigosa, pois destrói a confiança, mina as instituições e cria a ilusão de que basta a fúria para purificar o sistema.

Se quisermos menos corrupção e mais justiça, é urgente resistir ao populismo e investir em tecnologias capazes de introduzir escrutínio, rastreabilidade e participação do cidadão. O populismo oferece tempestade e caos, enquanto a inteligência tecnológica, aliada a instituições sólidas, poderá reconstruir o que o simplismo tenta destruir e instrumentalizar para sobreviver e conquistar eleitores.

Especialista em governação eletrónica

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