A identidade em construção

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Tive a honra de moderar, na terça-feira, um painel de debate sobre as migrações, a convite do presidente do Instituto Benjamin Franklin, António Rebelo de Sousa. Participaram António Costa e Silva (ex-ministro da Economia), Hugo Soares (deputado do PSD), Isabel Jonet (fundadora do Banco Alimentar contra a Fome) e António Mendonça (bastonário dos Economistas). Perante um grupo restrito de convidados reunidos na biblioteca do Grémio Literário, os quatro oradores apresentaram perspetivas distintas - por vezes opostas - sobre um tema que tem marcado a atualidade política dos últimos anos. Apesar das diferenças, houve um ponto de convergência: a integração dos imigrantes não pode ser descurada.

Isabel Jonet foi um pouco mais longe e defendeu que integração significa “sentirem-se felizes em Portugal”, convivendo de forma saudável com os nossos valores e a nossa cultura. “A minha cozinheira é muçulmana e não tenho problema algum com isso. Mas quando lhe peço que faça feijoada para o almoço, tem de incluir o toucinho e os enchidos”, ilustrou Jonet.

Esse consenso, ainda que parcial, abre espaço para uma reflexão mais ampla: o que significa, afinal, integrar? Vivemos numa era em que as fronteiras se tornaram simultaneamente mais porosas e mais vigiadas. A globalização, que prometia um mundo sem barreiras, revelou-se afinal um processo desigual: enquanto o capital e a informação circulam à velocidade da luz, as pessoas continuam a enfrentar muros, burocracias e preconceitos. As migrações, longe de serem um fenómeno marginal, são hoje um dos eixos centrais da política internacional e da vida das sociedades. E é precisamente aqui que emerge a questão mais delicada: a identidade.

Portugal conhece bem esta realidade. Fomos, durante séculos, um povo de emigrantes. Construímos comunidades em França, no Luxemburgo, no Brasil, em África, nos Estados Unidos. Levámos connosco a língua, a saudade, a gastronomia, mas também a capacidade de adaptação. Hoje, o movimento inverteu-se: recebemos migrantes de múltiplas origens, que procuram no nosso país segurança, trabalho e dignidade. E é nesse espelho que nos devemos rever: se exigimos respeito e integração quando partimos, não podemos recusar o mesmo a quem chega.

Mas a questão da identidade não se esgota na hospitalidade. Há quem veja na chegada de migrantes uma ameaça à “essência” nacional, como se a cultura fosse um bloco de mármore imutável. Essa visão é não só redutora como perigosa. A identidade é, por definição, dinâmica. É feita de camadas, de encontros, de influências. O fado não existiria sem a melancolia árabe, a diáspora judaica ou os ritmos africanos. A língua portuguesa não seria o que é sem o latim, o árabe, o crioulo. Defender uma identidade “pura” é negar a própria História e a própria ideia de portugalidade.

Ao mesmo tempo, não podemos cair na ingenuidade multiculturalista que reduz tudo a uma celebração acrítica da diferença. A integração exige regras, valores partilhados, um pacto social claro. A democracia, a igualdade de género, a liberdade de expressão não são negociáveis. A identidade europeia - e portuguesa - construiu-se também sobre esses pilares. Acolher não significa abdicar de princípios, mas sim convidar quem chega a participar num projeto comum. A diversidade só é riqueza quando assenta em bases sólidas de respeito mútuo.

O grande desafio político do nosso tempo é encontrar este equilíbrio: entre a abertura e a coesão, entre a diversidade e a pertença. A tentação populista é explorar o medo, erguendo muros físicos e simbólicos. A tentação utópica é ignorar as tensões reais, fingindo que a integração acontece por milagre. Ambas falham. O caminho exige pragmatismo e visão: políticas de acolhimento eficazes, investimento em educação e habitação, combate ao trabalho precário que alimenta guetos. E, sobretudo, uma narrativa que não reduza os migrantes a números ou ameaças, mas os reconheça como novos portugueses, chamados a construir connosco a identidade nacional dos próximos séculos.

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