A humanidade não é um negócio
Donald Trump ainda não fez o seu discurso no Congresso à hora em que escrevo este texto. Pelo que preveem os analistas deverá falar da Ucrânia, cuja ajuda militar acabou de suspender, da (velha) aliada Europa, sobre as tarifas que impôs, possivelmente sobre o financiamento para a sua promessa de deportação de imigrantes.
Não sabemos se falará do futuro da NATO ou das Nações Unidas, duas organizações que são pilares da paz mundial, a primeira do ponto de vista da defesa, a segunda no apoio ao desenvolvimento, que também contribui para essa paz.
É sobre este último aspeto que partilho alguns factos que, no turbilhão político interno dos últimos dias, têm passado um pouco despercebidos. Os EUA são o maior financiador de ajuda humanitária mundial: 61 mil milhões de euros, seguido da Alemanha com 35,8 mil milhões de euros, e das organizações da União Europeia (UE) com 15,8 mil milhões. Seguem-se países como o Japão, o Reino Unido e França, ainda com dois dígitos.
Os restantes todos abaixo de 8 mil milhões, segundo dados de 2023. O orçamento da ONU recebe 22% de verbas dos EUA, a mais volumosa das contribuições que variam de acordo com uma fórmula complexa que inclui a economia de cada país.
É assim que, apesar de o Governo norte-americano estar na linha da frente, pelo seu esforço, os EUA estão no fundo da tabela na percentagem do PIB que representa esse apoio: 0,24%. No topo está a Noruega (1,09%), o Luxemburgo (0,99%), a Suécia (0,93%) e a Alemanha (0,82%).
Na semana passada, o Governo norte-americano anunciou a suspensão de toda a sua ajuda aos programas humanitários. O impacto será, está a ser, devastador.
Sem esconder a sua apreensão, a diretora executiva do Fundo das Nações Unidas para a População, a portuguesa Mónica Ferro, contava ontem na CNN-Portugal que várias organizações, como a que dirige, mas também outras como a Organização Internacional para as Migrações ou o Programa Alimentar Mundial, tinham, nos últimos dias, recebido cartas de rescisão de contratos.
“Na prática”, sublinhou Mónica Ferro, “esta decisão vai obrigar a fechar milhares de clínicas de saúde. As mulheres que estão em zonas críticas e que já são tão impactadas, vão ficar sem sítios onde dar à luz, sem parteiras. Esses efeitos já estão a ser sentidos porque já estamos a desmobilizar projetos em curso. Estamos a alertar para o impacto catastrófico que vai ter na vida de muitos milhões de pessoas. Isto viola os princípios fundamentais da ordem internacional que temos”.
Recordou as palavras recentes do secretário-geral António Guterres, que “alertou para o facto de isto significar um desinvestimento na segurança e desenvolvimentos coletivos” e salientou que “investir na paz, no desenvolvimento em países que estão a sofrer conflitos” contribui “para a segurança de todos, é um equilíbrio mundial”.
A decisão foi tão “brutal, no sentido que foi tão rápida que, por exemplo, neste momento na República Centro Africana já há mais de 20 mil mulheres que não têm serviços de saúde vitais, incluindo condições para um parto seguro, porque tivemos de fechar as duas clínicas que lá tínhamos”, afiança Mónica Ferro. Cenários idênticos sucedem no Afeganistão, na Síria, no Bangladesh, em Gaza, na Etiópia e até na Ucrânia.
Sabemos que os EUA não podem pagar todas as contas - nem a da defesa europeia - e que nem todos os países europeus e outros mais desenvolvidos contribuem com os valores que deviam e podiam. Ainda nesta semana o Governo trabalhista do Reino Unido anunciou que vai reduzir a sua quota para a ajuda humanitária de 0,5% do PIB para 0,3% para reforçar o investimento para a defesa. Donald Trump já mostrou ao mundo que nada vai ficar como antes.
Com a sua arte de “homem de negócios” aplicada à política já conseguiu acordar a Europa para a necessidade de mudar o paradigma da sua dependência dos EUA em matéria de armamento; haverá, com certeza, também oportunidades de negócios em relação aos quais Portugal não estará distraído.
Mas é difícil de compreender o desvalor que se dá às vidas humanas. A humanidade vista como um negócio terá inevitáveis consequências dramáticas para a paz e para o desenvolvimento. É também essa avaliação que está a faltar aos EUA.