Michael Baum é especialista em Ciência Politica, Coordenador da Licenciatura em Filosofia, Economia e Política da FCH-Católica, e Senior Fellow no Instituto de Estudos Europeus da Universidade de California, Berkeley.
Michael Baum é especialista em Ciência Politica, Coordenador da Licenciatura em Filosofia, Economia e Política da FCH-Católica, e Senior Fellow no Instituto de Estudos Europeus da Universidade de California, Berkeley. FOTO: Paulo Spranger

“Trump olha para tudo como um negociador, mas a verdade é que, finalmente, alguma coisa está a acontecer”

Coordenador da Licenciatura em Filosofia, Economia e Política da FCH-Católica, Michael Baum fala ao DN sobre como a forma de Trump fazer política está a abalar os europeus.
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Com os EUA a aproximarem-se da Rússia, em relação sobretudo à Ucrânia, a Europa está a ficar cada vez mais para trás?

Primeiro gostaria de esclarecer que estou a falar apenas como professor da Católica, como alguém que tem nacionalidade portuguesa e americana. E nessa qualidade acho que o sentimento dos europeus neste momento é que a terra está a tremer debaixo dos seus pés. Tudo isso é palpável e real. Tenho familiares que votaram no presidente Trump e que olham para o que é que ele está a fazer como o cumprir das promessas de campanha. Se esta maneira de Trump negociar trouxer paz para uma guerra que muitos americanos veem como interminável - e os EUA já passaram por várias forever wars - qualquer coisa que ele consiga fazer para trazer uma paz duradoura é bem-vinda. Muitos americanos que votaram nele acham que se é preciso ferir as sensibilidades dos nossos aliados para alcançar o fim maior, que é a paz, que seja, E neste aspeto sou relativamente realista - do lado político, interno, dos EUA, há muita gente capaz de concordar com essa maneira de agir. É o preço a pagar. Mas também há muitos republicanos, até apoiantes do presidente Trump, dispostos a questionar essa estratégia que está a abanar os nossos aliados mais longevos. Até o futuro chanceler alemão, que é um atlantista, avisou que já não conta com os EUA, o que é um discurso incrível.

Esta nova forma de agir dos EUA de Trump está a desorientar os europeus, mas a verdade é que as anteriores estratégias não estavam a resultar e uma solução para a guerra parece estar mais próxima do que esteve nos últimos três anos. A Europa pode não gostar mas a estratégia dos EUA pode mesmo resultar?

Sim, sim, concordo. Os europeus estão zangados com o facto de ele estar a fazer isto sem eles à mesa, porque Trump pode não o admitir mas é factual que os europeus, incluindo a União Europeia e os países individuais, têm dado mais dinheiro para a causa ucraniana do que os EUA. Eu acho que Trump olha para tudo isto como um negociador - The Art of the Deal [A Arte da Negociação] é o título do livro dele -, mas a verdade é que, finalmente, alguma coisa está a acontecer. E a questão é: será que vai ser suportável pelos ucranianos, que têm perdido tantos milhares de pessoas, especialmente numa altura em que o custo da reconstrução vai ser gigantesco e os EUA estão a exigir uma quota parte da riqueza natural da Ucrânia para compensar.

Vimos Macron em Washington, os líderes europeus em Kiev no 3.º aniversário da invasão russa, mas a Europa continua a ter dificuldade em encontrar um figura que fale pelos 27. A frase atribuída a Kissinger “A quem é que ligo quando quero falar com a Europa?” continua atual?

É o problema clássico da coordenação, especialmente na área militar e de segurança. Mas, mais uma vez, eu vejo aqui uma oportunidade para a Europa. Tal como a certa altura o próprio presidente francês dizia que a NATO estava em “morte cerebral”, mas por causa das ações da Rússia houve um reforço da Aliança Atlântica, também esta forma unilateral de Trump agir está a criar uma reação, a dar um foco aos europeus e uma urgência que não havia há muito tempo. Talvez o génio de Trump seja a sua loucura - ao conseguir focar a atenção do resto do mundo quando abala o chão debaixo dos seus pés. Se é realmente um génio por estar a fazer teatro de forma a suscitar essa reação ou se é outra coisa qualquer, não sei. Mas coloco a hipótese de tudo isto acabar por fortalecer o projeto europeu de alguma forma - seja intencional da sua parte ou não.

Quando olhamos para a Europa, vemos a França em crise, a Alemanha com um novo chanceler, mas ainda a tentar formar governo. Os líderes das instituições europeias, não sendo eleitos diretamente, têm um problema de legitimidade. No momento de escolher quem se vai sentar à mesa das negociações com EUA, Rússia e Ucrânia, a Europa teria dificuldade em decidir, com vários candidatos ao lugar, de Macron a Merz, passando por António Costa ou Ursula von der Leyen, ou mesmo a italiana Meloni, se puxar dos galões da relação pessoal com Trump?

É possível. A grande tensão dentro da União Europeia é a questão federal. Durante a crise do euro, com a troika e a reação a esta, finalmente começou a falar-se muito seriamente na emissão da dívida coletiva, união bancária, todos esses assuntos que estão sempre na esfera do discurso na Europa, que pairam, mas nunca têm urgência até realmente haver uma crise. E nitidamente estamos num momento de crise para a Europa. Vamos ver se vai surgir um novo efeito federalista, especialmente com o Reino Unido de fora.

Ainda vão ter de convencer a França…

Sim, a França e a Hungria também. Não vai ser fácil. Há sempre uma pedra no sapato.

A Europa já estava a preparar-se há algum tempo para a hipótese de Trump ser eleito e de ter que compensar de alguma forma a ajuda americana à Ucrânia se esta fosse mesmo reduzida. Mas a UE está mesmo preparada, tem capacidade para o fazer?

Depende do sector de que estamos a falar. Eu vi um artigo que tinha um gráfico que mostrava a capacidade dos países da NATO em termos de população, em termos de PIB que gastam em defesa, em comparação com a Rússia. Sem incluir os EUA, eram os membros da NATO, exceto os EUA, e de facto têm uma capacidade igual ou superior à Rússia, não só na área de defesa e segurança, mas também em termos das receitas da economia. É uma comunidade com capacidade. Mas a grande questão que os europeus nunca levaram muito a sério é o preço do modelo social europeu, que existe e é muito diferente do modelo social dos EUA. O modelo social europeu foi feito com um certo outsourcing de defesa pelos EUA, e é isso que Trump está a pôr em xeque, está a dizer: “é tempo de vocês pagarem mais”. Isto vai ser muito difícil de explicar à opinião pública europeia. Já ouvi Ursula von der Leyen sugerir que isto não é necessariamente um jogo de soma zero entre Estado social, despesa pública e defesa. Ela pode dizer isso, mas vamos ser honestos, é. E os votantes nacionais, em todas as eleições, têm estado a ir na direção da direita, dos partidos populistas e neoliberais. Os partidos da esquerda têm tido dias difíceis. Parece que o consenso alargado que existia sobre a integração europeia, sobre o Estado social e a forma de pagar tudo isso, está a ser posto em causa. A minha leitura do europeu médio - e talvez esteja demasiado influenciado por viver em Portugal - é que este não quer um modelo norte-americano de sociedade, os europeus querem um sistema nacional de saúde, querem preservar isso, mas olhando para a dimensão do que está a ser pedido em termos de despesa para defesa, alguma coisa tem que ceder nos orçamentos nacionais.

Durante 80 anos, a Europa habituou-se a viver sob a proteção dos EUA. A Alemanha, por exemplo, já procurou junto da França e do Reino Unido a proteção do seu guarda-chuva nuclear. É mesmo uma alternativa ao americano?

Em termos de poder nuclear, estamos a falar de uma década para a Europa conseguir realmente chegar a algum nível para substituir o guarda-chuva dos EUA. E ninguém sabe exatamente o que é que o presidente Trump está a pensar em termos de reposicionamento das tropas, provavelmente vai haver um downsizing. Reduzir o pessoal é uma coisa, desde que mantenham as armas que estão na Europa para uma espécie de dissuasão. Mas se tirar os mísseis de forma abrupta seria outro nível de desestabilização na Europa.

Já ouvimos o presidente Zelensky dizer que está disposto a sair do cargo em troca de a Ucrânia entrar na NATO. A nova postura dos EUA está a abalar a liderança ucraniana e pode, em extremo, levar à queda do presidente?

Para mim a ideia da Ucrânia aderir à NATO não tem hipóteses. Neste momento, não tem hipóteses.

Porque implicaria envolver o mundo numa guerra?

Exatamente, até a Rússia já admitiu essa possibilidade. Não estou de maneira nenhuma a defender a Rússia, mas Vladimir Putin tem sido consistente há muito na demarcação das suas linhas vermelhas. E a Ucrânia na NATO na sua fronteira é uma linha vermelha. Seria a mesma coisa que Cuba ter-se tornado parte do Pacto de Varsóvia - vimos a reação dos EUA. Não pode haver dois pesos e duas medidas, temos de ser consistentes na maneira como avaliamos as coisas. E, de facto, a NATO prometeu, em 1990, com a reunificação da Alemanha, que não ia aceitar que a NATO se expandisse para Leste “nem mais um centímetro”.

Mas não foi o que aconteceu…

Pois não. É importante em política internacional tentar perceber o outro lado e pensar como é que ele está a avaliar as coisas. Eu acho que neste aspeto a Rússia teve até muita paciência. Mas quando finalmente as coisas descambaram, a reação foi uma invasão de uma brutalidade horrível. Mas não vejo o que pode vir depois de Zelensky, não tenho conhecimento de quem está a posicionar-se, quais as possibilidades que existem. A Ucrânia como Estado é altamente instável e tem sido sempre um país, por assim dizer, preso por arames, mas há muitos países que estão em situações dessas, o problema é que neste caso envolve diretamente a Rússia, uma potência nuclear. Não estou em posse de dados fiáveis sobre o sentimento neste momento na Ucrânia sobre uma saída negociada para a guerra versus lutar até ao fim. E imagino que alguém que tenha perdido os familiares na guerra esteja disposto a lutar até à morte para expulsar o invasor. Mas não será, talvez, o sentimento dominante na população. É impossível neste momento fazer boas sondagens na Ucrânia. Mas é aqui que as elites, que os negociadores, têm uma margem enorme para interpretar o que é possível domesticamente e, ao mesmo tempo, avaliar o que é possível internacionalmente em termos de negociação. Zelensky tem surpreendido muita gente, apesar de o presidente Trump lhe ter chamado ditador.

Chamar ditador a Zelensky, dizer que foi a Ucrânia a começar a guerra [esta entrevista foi realizada antes da ida do presidente ucraniano a Washington e da consequente troca de palavras com Trump], como dizia Boris Johnson há dias: não é para levar à letra tudo o que o presidente Trump diz? Aquilo é feito para chocar?

Eu acho que isso faz parte da tal art of the deal. Em determinados momentos é preciso denegrir um lado para pôr essa pessoa numa posição mais frágil - e talvez haja aqui uma estratégia de engraxar a Rússia para trazer Putin para a mesa das negociações disposto a negociar quando os russos estão num momento de superioridade militar. Talvez seja isso. E pode ser que quando Trump precisar vire a mesa e seja mais duro com os russos e exalte Zelensky. Não sei, não estou dentro da cabeça do Trump e não sei se alguém estará.

Ao dar apoio a Putin, Trump e os EUA não estão a jogar um jogo perigoso, validando um regime que invadiu um país soberano há três anos? Putin não vai sentir que pode fazer isso de novo?

Eu se fosse Taiwan, ficava incrivelmente assustado com essa estratégia. Porque as reivindicações da China sobre Taiwan, do ponto de vista de Pequim, são tão historicamente válidas como as da Rússia sobre a Ucrânia. Neste sentido, as lições a tirar daqui preocupam imenso os estudiosos das relações internacionais.

Aquilo que estamos a ver é o início de uma nova ordem mundial?

Talvez vá ser um pouco controverso, mas às vezes tenho dificuldades em engolir aquele conceito de uma ordem mundial mítica baseada em regras que existia no pós-II Guerra Mundial. Porque apesar dessa ordem mundial continuou a haver invasões, talvez não o tipo de invasão de um país e a sua ocupação por inteiro, como Hitler fez na II Guerra, mas houve decapitações de governos de que os EUA não gostavam. Por isso, muita da reação ao que Trump está a fazer, como se fosse uma violação desta ordem mundial, eu não alinho. Eu acho que Trump, de alguma forma, está a dizer abertamente coisas que antes… Os governos americanos eram mais subtis, tivemos maneiras simpáticas de dizer que tudo se justificava com o restaurar da democracia, quando, no fim, o que fizemos no Chile foi tirar Allende e pôr Pinochet. Talvez eu esteja a tentar dar a Trump algum benefício da dúvida por ele ser menos politicamente correto. Se vai ser uma nova ordem, é muito possível. Quando se olha para o mapa das bases militares, os EUA têm umas 750 espalhadas pelo mundo enquanto todos os outros países têm qualquer coisa como 250. Ainda é um mundo de um poder hegemónico. Mas essa hegemonia está a ser contestada pela China, mesmo se ainda está longe de ter um poder militar equivalente. Já para não falar no soft power, que sempre achei que era o verdadeiro poder dos EUA. Essa é a parte que me preocupa, quando olho para a atuação de Trump - no desejo de falar francamente e não ser politicamente correto, de dizer as coisas como são, ele está a perder uma qualidade importantíssima do poder norte-americano, que é o soft power. E quando a Europa e países que eram aliados, começam a dizer coisas como disse o chanceler da Alemanha, estamos a assistir a uma mudança enorme na política internacional.

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