A hipocrisia do “... mas com regras”

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“Imigração, mas com regras”, tem-se ouvido muito nos últimos dias de campanha eleitoral. Trata-se, como é óbvio, de uma forma supostamente recheada de bom-senso e mais palatável do que dizer “sim, mas não”. Mas tem havido imigração sem regras, porventura? Sempre houve regras! O que sucedeu na última década foi apenas a ciclotimia de incentivos públicos e de regras estatais, em torno da relação com os estrangeiros, com legislação que é um bom exemplo de como não escrever regras jurídicas e de afastamento entre a criação iluminada de regras nos corredores do parlamento e a realidade dos balcões de atendimento que funcionam longe das proclamações e da pureza dos princípios.

O número de imigrantes que está em Portugal, a sua larguíssima maioria a trabalhar ou a estudar, resulta precisamente das regras de imigração que têm sido estabelecidas e não de qualquer desvio ao direito estabelecido. O que sucedeu, resultado das decisões de sucessivos parlamentos e governos, foi a oscilação entre abertura e fechamento, entre convite ao investimento e rejeição do investimento, entre a necessidade de captação alargada de mão-de-obra e descoberta das diversas incapacidades de acolhimento, alojamento e de regularização, entre o despejar de formalidades e exigências documentais e a incapacidade de as controlar ou de dar uma resposta aos pedidos formalizados seguindo essas mesmas regras.

O Estado que agora diz, sob a capa de sonsice que bem o caracteriza, “mas com regras”, é o mesmo que criou incentivos fiscais específicos para a vinda de estrangeiros, que vendeu autorizações de residência a troco da compra de casas, que criou regimes especiais de acolhimento de estudantes estrangeiros, que flexibilizou ou afastou requisitos para o exercício por estrangeiros de profissões regulamentadas. E que estabeleceu regras de entrada alargadas, nomeadamente no espaço da CPLP, mas manteve as pessoas sujeitas ao arbítrio administrativo e ao sabor dos tempos de resposta geridos pelos serviços, estes tantas vezes fora da lei. Ou que aproveita a mão-de-obra estrangeira para recolher impostos e contribuições sociais, já para não falar do funcionamento da economia, mas que a trata como indesejada para quase tudo o resto. Quando o Estado e os agentes políticos dizem “imigração sim, mas com regras”, devem estar a falar para si próprios, recordando – e devem fazê-lo, porque estamos a falar de pessoas e dos seus direitos – a sua própria autovinculação à legalidade e, o que é mais, à decência e à lealdade devida a um Estado de direito. Os Estados podem legitimamente mudar de políticas, não podem é lançar anátemas sobre quem toma decisões de vida com base nos pressupostos que esse mesmo Estado estabeleceu.

Não há nenhum problema de criminalidade acrescida associado ao aumento da imigração, o que tem sido devidamente demonstrado, a não ser provavelmente a que é sugerida pelas próprias ineficiências públicas ou pelo aproveitamento abusivo por parte de empresas e empregadores nacionais. O que pode haver, sim, é quem se sinta incomodado por ver pessoas de turbante na rua ou ouvir várias vezes por dia português com sotaques. E pode-se até legislar e governar para prevenir esses incómodos. Esquecendo, por exemplo, que 16% da população do Luxemburgo é portuguesa ou que residem em França tantos portugueses nascidos em Portugal como nos anos 70. Ou até que saíram de Portugal tantos portugueses a partir de 2010 como no início dos anos 60. Afinal são só 2,2 milhões de Portugueses emigrantes, esse detalhe.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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