A herança de Eleanor Coppola
Eleanor Coppola faleceu no dia 12 de abril, na sua casa em Rutherford, Califórnia — contava 87 anos. O seu nome é indissociável da autoria daquele que é, seguramente, um dos mais incríveis documentários que já se fizeram sobre a rodagem de um filme: Corações das Trevas (1991), no original Hearts of Darkness: A Filmmaker’s Apocalypse, sobre as filmagens do épico sobre a Guerra do Vietname, Apocalypse Now (1979), realizado pelo seu marido, Francis Ford Coppola.
Vale a pena notar que, realmente, seriamente e irrevogavelmente, falamos de uma rodagem e das respetivas filmagens. Ou seja: importa recusar a banalidade técnica e formal da palavra “gravação”, vulgarizada pelas rotinas das telenovelas e, hoje em dia, repetida até à exaustão, não apenas pelo jornalismo sem memória, mas também por muitos profissionais ligados à produção novelesca (televisiva ou cinematográfica), incluindo, tristemente, alguns atores.
Na verdade, não se “grava” um filme — um filme… filma-se. A aparente redundância é importante, já que filmar está longe de ser a mera aplicação de rotinas narrativas que se registam em suportes de tratamento mais ou menos anónimo para difusão massiva em horários nobres de onde, há muito tempo, em nome de uma obscena democracia audiovisual, a nobreza cinematográfica foi excluída. Filmar é participar de uma aventura visceralmente humana.
Eleanor Coppola partilhou a realização do documentário sobre Apocalypse Now com Fax Bahr e George Hickenlooper: o trio repartiu, aliás, o Emmy de Melhor Documentário (“programa de informação”) lançado em 1991. Em qualquer caso, não será abusivo supor que o seu papel na feitura de Hearts of Darkness foi central e determinante. Até porque foi o próprio marido, por certo consciente das singularidades do projeto e antecipando algumas atribulações que se confirmaram, que lhe pediu que pegasse numa câmara e acompanhasse a rodagem — tinham-se casado em 1963, tendo-se conhecido um ano antes, na rodagem de Dementia 13, primeira longa-metragem de Francis em que Eleanor trabalhou como assistente de cenografia.
O mínimo que se pode dizer da rodagem de Apocalypse Now é que “duplicou” a própria epopeia que o filme encena. A lista de problemas enfrentados tem qualquer coisa de dantesco: as dificuldades decorrentes das filmagens na selva das Filipinas, a utilização dos helicópteros do ditador Ferdinand Marcos (que várias vezes os “requisitou”, condicionando o calendário da rodagem…), a contratação de Martin Sheen depois do despedimento de Harvey Keitel, os problemas práticos criados por Marlon Brando, um tufão que destruiu grande parte dos cenários, a interrupção dos trabalhos devido ao facto de Sheen ter sofrido um ataque cardíaco…
Tudo isso ficou para sempre resumido pelo próprio Francis numa conferência de imprensa que está no documentário: “O meu filme não é sobre o Vietname. É o Vietname. Foi mesmo isso: éramos gente a mais, tivemos acesso a demasiado dinheiro, a excesso de equipamento — e, a pouco e pouco, fomos enlouquecendo.”
Em The Apocalypse Now Book (ed. Faber and Faber, Londres, 2000), o autor Peter Cowie recorda as palavras exemplares de Eleanor, em 1999, evocando as convulsões vividas na gestação de Apocalypse Now: “Francis quis fabricar uma espécie de mito, uma ópera que transcendesse o contexto da Gguerra do Vietname. Creio que o que ele queria dizer estava muito para além de um mero comentário sobre o conflito. Ele queria falar da guerra em geral, da experiência humana da guerra, e daquilo que a guerra faz às pessoas. O filme reflete a sensibilidade psicadélica dos Anos 60, mas acaba por adquirir dimensões míticas.”
Há qualquer coisa de estranha “repetição” do destino no facto de, por estes dias, Francis ter voltado à atualidade do cinema através do anúncio da sua presença na competição do Festival de Cannes (14/25 maio) com Megalopolis — recorde-se que, em 1979, Apocalypse Now arrebatou a Palma de Ouro em Cannes (ex-aequo com O Tambor, de Volker Schlöndorff). Trata-se de mais uma gigantesca produção, neste caso financiada pelo próprio realizador, concretizada depois de várias décadas em que alguns grandes estúdios de Hollywood recusaram avançar com o projeto. Neste momento, o filme está mesmo num impasse comercial, já que (ainda) não tem distribuição assegurada. Dir-se-ia que as dimensões míticas que Eleanor referiu continuam associadas ao apelido Coppola.