A guerra cognitiva e a guerra das narrativas: a relevância das operações de influência nas guerras
Influenciar a forma de pensar dos atores relevantes num conflito é uma preocupação, antiga, dos dirigentes políticos e estratégicos das suas diferentes partes. E esta ação de influenciar atores rege-se, naturalmente, por materializar objetivos que ajudem a atingir o fim último do conflito, ou da guerra, que é impor a nossa vontade sobre o(s) adversário(s).
Na guerra, somos tentados a dar uma relevância, definitiva e única, ao instrumento militar, porque ele, como detentor do uso da força, parece ser determinante no atingir dos objetivos políticos e estratégicos que estão em causa. Mas, se nos debruçarmos sobre a História Política e Militar do nosso mundo, vemos que, muitas vezes, o vencedor da guerra ou do conflito, não detém o instrumento militar mais poderoso sob o ponto de vista da supremacia, numérica e técnica, em equipamentos militares, armamentos e combatentes. A guerra é um fenómeno complexo, porventura o mais complexo da atividade humana, que além de ser, por natureza, um fenómeno político, também é um fenómeno social, em que os diversos aspetos da psicologia, individual e de grupo, são relevantes nas decisões políticas e operacionais na conduta da guerra e das operações militares conexas. Há, portanto, aspetos fulcrais como a vontade, o moral, a gestão de perceções e expectativas, entre outros, que influenciam o curso dos acontecimentos, muitas vezes de forma decisiva na obtenção do sucesso. Claro que um instrumento militar fraco, por incapacidade técnica e de suficiência, afeta os elementos morais da guerra, onde a vontade de vencer, mesmo que seja forte, poderá não ser suficiente. Nestes últimos meses temos assistido a esta realidade, no caso concreto da Ucrânia, na guerra que a opõe à Federação Russa.
Clausewitz, o pensador que, talvez, melhor estudou e teorizou a Guerra como fenómeno político, identificou e caracterizou a tríade estratégica da Guerra como a Racionalidade, o Acaso e a Violência, a que associou uma outra tríade, constituída pelo Governo, que representa a Política (a Racionalidade), pelo aparelho militar, que representam a Força (o Acaso no combate) e, pelo Povo, elemento mobilizador da vontade (a Violência). Não é nosso objetivo analisar as teorias de Clausewitz, mas aproveitar os elementos desta tríade para melhor percebermos onde se aplica a execução desta guerra cognitiva, que é a mente humana, seja ela a dos decisores políticos, seja a dos decisores estratégicos e operacionais, seja a do cidadão comum. Clausewitz também definiu a finalidade da Guerra como a derrota militar do adversário ou da sua vontade de combater. Percebemos, portanto, que a vontade é o elemento central, o chamado centro de gravidade, das ações estratégicas da guerra cognitiva dum ator sobre o seu oponente, aplicadas nas mentes dos vários pontos da tríade.
Muitas destas ações estratégicas ou operacionais centram-se na construção de narrativas, que pretendem atingir o moral e condicionar a vontade de combater do adversário. Estas ações podem ter um caráter ofensivo, de ataque e destruição do moral e da vontade sobre um adversário, num ou vários pontos da tríade, ou de natureza defensiva, visando mitigar os efeitos da ação das narrativas do adversário sobre a nossa tríade, protegendo e preservando as nossas capacidades morais, onde se inclui, como objetivo maior, a vontade de continuar a combater.
A Federação Russa e a China introduziram, desde há muito, a Guerra Cognitiva nas suas Estratégias Nacionais, como aspeto fundamental das suas operações, com a construção de narrativas que visam construir, nos alvos da tríade do adversário (e noutros atores não-envolvidos diretamente no conflito) realidades virtuais, que alteram a perceção da realidade objetiva, condicionando a construção dessa mesma realidade. O efeito pretendido é construir perceções favoráveis à consecução dos seus objetivos políticos e estratégicos, que quebrem a vontade dos adversários de continuarem a combater. Estas narrativas são cuidadosamente construídas, muito baseadas na utilização das mais modernas tecnologias de informação, apoiadas nas redes sociais, e com poderosas campanhas de desinformação. No caso da Rússia, estas narrativas visam, também, estimular perceções nacionalistas na própria população russa, que estimulem o apoio ao esforço de guerra.
A Federação Russa possui um sistema de guerra cognitiva muito robusto, com muito treino e capacidades tecnológicas adequadas, que constrói, difunde e amplia as diversas narrativas, visando construir perceções de condicionamento de ação, que contribuem para se atingirem os seus objetivos estratégicos e operacionais. Um dos objetivos das suas narrativas é criar nas opiniões públicas ocidentais a ideia da inutilidade de continuar a apoiar o esforço de guerra ucraniano, o que sairá muito caro, visto que a Rússia ira derrotar a Ucrânia, custe o que custar, mesmo que tenha de utilizar armas nucleares. Esta narrativa visa paralisar as decisões sobre os financiamentos, assustando as opiniões públicas ocidentais por um lado e, por outro, criar a perceção de que os financiamentos serão um custo que os europeus vão ter de suportar que não produzirá efeitos no terreno.
Estas narrativas têm produzido algum efeito, baseando a perceção ocidental numa realidade virtual, que na realidade “real” não tem razão de ser, como é o caso da ameaça do uso de armas nucleares, que a Rússia nunca utilizará nesta situação.
Outra narrativa é a de que o financiamento para fornecimento de armamentos e munições não produzirá efeitos positivos para a Ucrânia, o que não é verdade pois, como sabemos, com uma sustentação adequada a Ucrânia poderá, no mínimo fazer face aos atuais ataques russos.
Outra dimensão desta guerra cognitiva é a grande dificuldade dos países ocidentais em contrariar de forma eficaz esta construção de perceções sobre as suas tríades, em especial sobre as suas populações. Embora a NATO tenha vindo a produzir doutrinas e procedimentos para contrariar a desinformação, através duma robusta comunicação estratégica (STRATCOM, na terminologia anglo-saxónica) não possui, nem por sombras, as capacidades organizativas e de produção de contranarrativas, que façam face às capacidades russas. Acresce que não é possível, nos países democráticos, produzir narrativas baseadas em campanhas de desinformação, alicerçadas em inverdades, pois o crivo da Comunicação Social e das opiniões públicas, seria o primeiro a desmontar essas narrativas.
A relevância, cada vez maior, desta forma de guerra cognitiva, que utiliza em larga escala as redes sociais para amplificar as narrativas que atinjam a construção de perceções erróneas, por parte dos diversos atores, obriga a que este assunto mereça ser tratado convenientemente pelas entidades competentes dos países democráticos, sejam elas políticas ou militares. Exigem investimento em organização, em tecnologias, em estudos nas Ciências Sociais, na criação de experts que suportem a construção das narrativas adequadas que, no fim do dia, produzam os efeitos certos sobre as tríades dos opositores, e mitiguem ou desmontem as narrativas adversárias que visam afetar o nosso campo. O risco de desastre estratégico, se não o fizermos, é enorme e com sérios impactos, não só na geopolítica e na gestão de conflitos, mas, também, na capacidade de preservação dos regimes democráticos em que vivemos.