A greve dos números e o “país real”

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Ainda o dia não terminou e já todos conhecemos o guião, repetido à exaustão. De um lado, sindicatos eufóricos a clamar que o “país parou”; do outro, Governo e patrões a garantir que a adesão foi “residual”.

A verdade, como sempre, está na zona cinzenta. A greve geral foi refém de setores específicos dos “grevistas profissionais” e se, de facto, mais alguns aderiram, a vida continuou, como sempre. Claro que os professores não puderam faltar à chamada, tal como os trabalhadores da CP, que detêm o poder real de deixar uma boa parte do país apeado (ainda que o teletrabalho lhes esteja a retirar essa capacidade de perturbação da produção).

Mas há linhas vermelhas que não se podem ultrapassar. São inaceitáveis as imagens de piquetes a bloquear fisicamente elétricos (ou “metros de superfície”), impedindo a sua marcha. É preciso que se entenda, de uma vez por todas: o direito ao trabalho e à livre circulação tem, pelo menos, o mesmo valor que o direito à greve. Bloquear a vida alheia não é luta laboral, é coação.

De qualquer forma otiming desta paralisação é desastroso por várias razões. Numa altura em que as alterações ao Código do Trabalho ainda estão a ser negociadas, tentar paralisar a produção são vários tiros nos pés. O que quase ninguém quer discutir é como o bloco europeu perde relevância global na inovação (veja-se como em os Arquitetos da IA, as Personalidades do Ano da revista Time, não se refere uma única empresa europeia) e, internamente, Portugal faz de conta que nada disso se está a passar. Por cá, celebram-se crescimentos anémicos, mas como é sabido - só que convém repetir à exaustão - até a Roménia já nos ultrapassou no PIB per capita em paridade de poder de compra. Paralisar o país neste contexto não é defender direitos; é agravar o atraso.

Francamente, acredito que o “país real” ignorou, ou tentou ignorar, a paralisação. A maioria das pessoas foi trabalhar ou fez por isso. A prova de fogo esteve à minha porta: num dia em que o país deveria estar de braços cruzados, CTT e GLS entregaram as encomendas que, por coincidência, tinha prometidas para este dia (Ai o Natal…). O mesmo se viu no comércio local, que encontrei todo de portas abertas. Afinal, quem paga as contas não se dá ao luxo de parar.

Também no DN, alguns jornalistas, fotógrafos e designers estiveram a trabalhar, já para não falar nos técnicos necessários para as edições tanto em papel, como digitais, de forma a que a informação da própria greve chegasse até si. Se todos fizessem como aqueles que aderiram “à luta”, a mesma não teria sido sequer noticiada, pelo menos em tempo útil...

Mas talvez nada disto importe. Somos um país habituado a discutir assuntos pela rama, sem rigor nos números - exceto nos complexos cálculos combinatórios que a maioria já sabe fazer quando o apuramento da seleção nacional de futebol ou o clube do coração está difícil. Para tudo o mais - incluindo o futuro da nossa economia e, inevitavelmente, o dos nossos filhos, e as nossas reformas - a discussão continuará a ser: muito ruído, pouca clareza e o país a marcar passo.

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