Agora, que tombam chuvas d"Outono, começam as baixas pressões, sobretudo humanas. Cuidado por isso, muito cuidado, com a pérfida SDS, maleita detectada, ao que parece, por um psiquiatra da Clínica Bethesda, no Maryland, o Dr. Norman Rosenthal, que se tem interessado por muita coisa, da meditação transcendental ao stress pós-traumático, passando pelos efeitos do jet lag, e que, em 1980, desenvolveu uma pesquisa que concluiu o óbvio: as pessoas que são afectadas pela SDS (acrónimo de Síndrome de Depressão Sazonal) quebram um bocadito no pino do Inverno, têm então menos energia, mais melancolia, perdem criatividade, produtividade. Segundo o Dr. Rosenthal, isso influi até na saúde física, sendo sintomático que o número de doentes passe de 1,4% da população, na soalheira Florida, para 9,7% no álgido e chuvoso New Hampshire..Talvez o mal não esteja no frio que faz lá fora, mas no Inverno que connosco trazemos e que nos devora o espírito, pois se há uns que deprimem e fenecem com as chuvas, também há muito boa gente que, em contrapartida, rejubila e resplandece à visão de um céu carregado de nuvens. Um deles, dos mais taraditos de todos, é inglês, claro, e chama-se Gavin Pretor-Pinney. Em 2004, fundou a Cloud Appreciation Society, uma agremiação de adultos, espera-se que sensatos, cujo hobby predilecto consiste em contemplar nuvens das mais diversas formas, quanto mais estranhas, melhor. Pretor-Pinney é também autor de uma série de livros sobre o assunto, de que se destaca The Cloudspotter"s Guide, de 2006, do qual existe tradução portuguesa (O Mundo das Nuvens, ed. Estrela Polar), infelizmente e desgraçadamente esgotado -- para quando uma reedição?.A loucura deste caçador e gourmet de nuvens é tal que, num belo dia, decidiu ir aos antípodas, do outro lado do mundo, só para contemplar uma delas. Não uma nuvem qualquer, igual aos fiapos escanzelados que às vezes surgem nos céus, mas a mais majestosa de todas, grande de muitos quilómetros, a Glória da Manhã. Produto de um fenómeno meteorológico raro, a Glória é uma nuvem solitária de baixa altitude, que forma uma coluna perfeita, em forma de tubo, que chega a atingir mil quilómetros de extensão, ou seja, que é maior do que o Reino Unido, de norte a sul. Já foi observada noutras paragens, no centro dos Estados Unidos, no Canal da Mancha, em Berlim e em Munique, na Rússia, na costa do Rio de Janeiro, mas onde ela mais aparece -- e, note-se, nem sempre -- é no Golfo da Carpentária, ao norte da Austrália, defronte a Burketown, uma cidadezinha com 238 habitantes completamente isolada do resto do mundo, a distâncias quilométricas de tudo e de todos. Foi registada pela primeira vez em 1942, por pilotos da Força Aérea Australiana, mas de há muito integrava o folclore e as lendas dos aborígenes, que lhe chamam kangólgi e que fazem danças específicas (wamur) para fomentar a sua aparição, pois ela é escapista e incerta e são muitos os forasteiros que percorrem mundos só para a ver, passam semanas à sua espera e, no final, saem de Burketown desapontados. Mas, quando a Glória da Manhã surge no horizonte, monumental e poderosa, são muitos os que sobem para cima dos aviões -- ou, melhor dito, dos planadores -- para mergulharem no seu ubérrimo seio, para a sobrevoarem em voo livre a velocidades que chegam a atingir os 260km/hora. A nuvem, essa, é capaz de se mover a uns impressionantes 60km/hora, como um monstro celeste prestes a devorar o universo. O seu poder é tal que, diz-se, antes de ela se avistar no horizonte todas as folhas das árvores se agitam e, reza a lenda, a madeira das mesas do único pub de Burketown começa a curvar, a enfolar-se, e a humidade é tanta que as portas de vidro dos refrigeradores ficam cobertas de geada. Os aborígenes têm um termo sensacional para o fenómeno -- yppipee, que anuncia a estação das chuvas de final de Outubro --, mas o seu nome universal é outro, e não menos belo: a Glória da Manhã..Por causa dela, pus-me a folhear uma preciosidade que recentemente me veio parar às mãos, o International Cloud Atlas, em vários volumes, edição da Organização Meteorológica Mundial, de 1956, objecto, em 1974, de um resumo em português do nosso Serviço Meteorológico Nacional. É obra prodigiosa, maravilhosa, que começa por definir o que é uma nuvem ("agregado visível de partículas muito pequenas de água no estado líquido ou no estado sólido, ou nos dois, em suspensão na atmosfera") e depois nos leva pelo complicadíssimo reino da taxonomia nebulosa, onde existem, caso não saibam, nuvens nacaradas e nuvens noctilucentes e, nas diversas espécies de nuvens, os cirros, os cirrocúmulos, os cirrostratos, os altocúmulos, os altostratos, os nimbostratos, os estratocúmulos, os estratos, os cúmulos e, claro está, os cumulonimbos. A coisa, já de si difícil, não fica, porém, por aqui, pois existem subespécies: um simples cúmulo, por exemplo, pode ser humilis, mediocris, congestus ou fractus, havendo ainda a variante radiatus. Não contente com isso, há espécies acessórias muito fofas, todas com nomes latinos -- pileus, velum, virga, praecipitatio, tuba, arcus, pannus, mamma, incus --, que nos fazem mergulhar numa autêntica nuvem, mas de ignorância, para usarmos o título de um célebre texto místico inglês do século XIV, The Cloud of the Unknowing, traduzível à letra por A Nuvem do Não-Saber ou A Nuvem do Desconhecido..De facto, é tudo tão nebuloso e tão complexo que, descendo das nuvens à terra, o mais que se oferece dizer é que nem nos apercebemos da importância que elas têm tido na história e na cultura humanas. E os que julgam que o Dumbo foi o primeiro elefante voador do mundo, devem ficar a saber que, de acordo com os mitos sânscritos das origens, os primeiros elefantes da Criação eram brancos e tinham asas, e eram dotados do poder mágico de fazer chover. Mais intrigante é pensarmos que uma nuvem mediana alberga consigo 10.000.000.000 de gotículas por metro cúbico e que o peso total dessa nuvem mediana (uma cumulus mediocris, por exemplo) é de 200 mil quilos, o equivalente a oitenta elefantes (outra estatística impressionante: a energia contida num cumulonimbo é duas vezes a da bomba de Hiroxima). As nuvens não são um exclusivo das cosmogonias hindus, surgindo na Bíblia, por diversas vezes: no Monte Sinai, orientando o êxodo de Moisés, ou nos Actos dos Apóstolos, na Transfiguração e na Ascensão de Cristo - Deus, irrepresentável, surgia atrás de uma nuvem, a shekinà, ou era simbolizado por ela, não sendo por acaso que, segundo o esoterismo islâmico, Alá era uma nuvem antes de se revelar, ou que as nuvens tiveram papel fulcral em todas as religiões e crenças do mundo, desde os povos do Báltico aos aborígenes, passando pelos budistas ou pelos Massais do Quénia. A redescoberta da mitologia clássica pelo Renascimento produziria até exemplos de "pornografia nebulosa", como lhes chama Gavin Pretor-Pinney, que a este propósito cita o quadro Júpiter e Io, pintado por Correggio em 1532, e actualmente no Kunsthistorisches Museum, de Viena, no qual se mostra aquela sacerdotisa em êxtase, abraçada pelo deus lascivo em forma de nuvem ou, mais precisamente, de cúmulo. Andrea Mantegna, de seu lado, preferia os altocúmulos e, dos três quadros que pintou de São Sebastião, dois mostram-no cercado dessas nuvens: um está no Louvre; o outro, no Kunsthistorisches Museum, tem uma nuvem curiosíssima, com a forma de um homem a cavalo no lado esquerdo da tela (vejam na Net, que vale a pena). E, em Minerva Caçando os Vícios do Jardim da Virtude (ou O Triunfo das Virtudes), no Museu do Louvre, Mantegna cometeu a proeza de colocar, dissimulado, um rosto de perfil na forma de um cúmulo que atravessa os céus. Séculos depois, na Feira Mundial de Osaka, de 1970, a escultora japonesa Fujiko Nakaya surpreenderia o mundo com as suas esculturas de fumo e nuvens feitas a partir de jactos de água, experiência que replicaria nas décadas vindouras, em obras cada vez mais elaboradas e envolventes; e, na Expo 2002, na Suíça, os arquitectos Elizabeth Diller e Ricardo Scofidio ergueram em Yverdon-Les-Bains, no Lago de Neuchâtel, um estranho e assustador pavilhão feito de uma espessa massa de fumo, o "Blur Building", exemplo típico da "arquitectura de atmosferas", liquefeita e evanescente..Mas se é grande a beleza da arte, maior a da natureza. Quem duvidar que veja imagens de um fenómeno chamado "evento luminoso transiente", o qual assume três formas distintas: os blue jets (jactos azuis), os sprites (ou duendes) e os elves (elfos). Segundo a informada Wikipédia, trata-se, e cito, de "electrometeoros caracterizados por emissões ópticas de curta duração, em geral de luminosidade muito menor do que o comum relâmpago, que se desenvolvem na média e alta atmosfera por cima de trovoadas activas". Quem fica fascinado com as auroras boreais, não pode deixar de contemplar esta extraordinária beleza da natureza, visível a olho nu apenas por escassas fracções de segundo, e que assume formas únicas, desconcertantes, como gigantescas medusas de vermelho vivo, vivíssimo, as quais, ademais, só foram descobertas há bem pouco tempo, nos anos 1990..Razão tinha o fotógrafo Alfred Stieglitz quando, em 1925, começou a fotografar a beleza das nuvens nos céus, projecto que levou a cabo até 1934 e do qual resultaram 220 imagens, pelo menos. A série, denominada Equivalents, é um prodígio de técnica e de estética e, segundo se diz, Stieglitz foi o primeiro a retratar as nuvens apenas enquanto tal, apenas pela sua qualidade artística. As suas nuvens constituem objectos singularíssimos: por um lado, são um puro produto da natureza, nelas não há truques nem artifícios, mostram-se como estão no céu andante; por outro, são imagens extremamente abstractas, quase parecendo pinturas, pois nelas não se descortina nada que não sejam manchas ou traços brancos num fundo escuro..É essa sua natureza abstracta e fugidia que torna difícil traduzir as nuvens em música, clássica ou contemporânea. Muitos compuseram já sobre tempestades e trovões, fenómenos de muita e tremenda sonoridade, mas as nuvens, em si mesmas, são mudas e silentes, não fazem ruído algum. Pelo menos, era o que que pensávamos até conhecer a Harpa das Nuvens, concebida por Nicolas Reeves, professor canadiano (não confundir com o controverso egiptólogo britânico Nicholas Reeves) que inventou um instrumento electrónico meteorológico que, através de um radar, converte as diferentes formas de nuvens em sequências musicais e que já foi instalado em diversos locais do Canadá, dos EUA, de França, da Alemanha e da Polónia..Na sua imensa variedade, as nuvens tanto convocam a imaginação romântica e a sua noção de sublime (lembremos as gigantescas telas paisagistas norte-americanas do século XIX, como as de Frederic Edwin Church ou Albert Bierstadt, prolongadas nas fotografias de Anselm Adams ou nos westerns de John Ford) como se prestam a devaneios futuristas de ficção científica: os altocúmulos lenticularis têm, como o nome indica, a forma de uma lentilha, mas também, estranhamente, a de um disco voador, não admirando, pois, que tenham sido confundidos com OVNI"s por vários aviadores ou simples observadores. Uma fotografia feita em Julho de 1907, na cidadezinha de Droebak, na Noruega, foi divulgada, durante décadas, como prova da existência de naves extraterrestres, até que alguém concluiu ser um altocúmulo lenticularis, perfeitamente natural e, de resto, há muito conhecido na arte ocidental: na sequência de frescos pintados em 1466 na Basílica de São Francisco, em Arezzo, intitulada A Lenda Verdadeira Cruz, Piero della Francesca representou diversos altocúmulos lenticularis, um tipo de nuvem que provavelmente conhecia bem, dado ter nascido em Borgo San Sepolcro (actualmente, Sansepolcro), uma terra situada nas faldas dos Apeninos e, por isso, muito propícia à formação daquela forma nebulosa, que, insiste-se, nada a tem a ver com OVNI"s ou extraterrestres..Ainda assim, alguns persistem em associar as nuvens ao sobrenatural e até mesmo ao Diabo: na Cidade do Cabo, há uma nuvem gigante, soberba e belíssima, que por vezes cobre por completo a Table Mountain com um impressionante manto branco (e, por isso, é chamada pelos locais de Tablecloth). Trata-se de um stratocumulus, idêntico aos que frequentemente cobrem as montanhas como um boné, e que deu azo a uma lenda antitabagista: Jan Van Hunks, um pirata neerlandês do século XVIII, cansado de uma vida passada a semear o terror nos mares, decidiu repousar no sopé da Table Mountain e aí fumar tranquilamente o seu cachimbo; um homem acercou-se dele, desafiando-o para uma competição, cujo prémio seria um pote de oiro para aquele que conseguisse fumar durante mais tempo. Após vários dias a esfumaçar, tanto que cobriu a montanha de uma espessa nuvem, Jan Van Hunks venceu a aposta, mas acabou por descobrir que, desgraçadamente, o seu contendor era o próprio Diabo, que não só não lhe deu oiro algum como o envolveu naquela nuvem densíssima, irrespirável, precipitando-o para sempre nos quintos dos infernos. Um aviso para os fumadores....São também do domínio diabólico as experiências que, ao longo de décadas, as potências militares têm feito com as nuvens, na ânsia de controlar o poder imenso encerrado em cada gotícula, apesar de minúscula (uma gota de um cúmulo não tem mais do que 0,005 milímetros). Desde há muito que se associam as previsões meteorológicas às guerras e aos esforços bélicos: a Escola de Bergen, fundada em 1917 por Vilhelm Bjeknes, no rescaldo da Primeira Guerra, pioneira nos estudos da atmosfera e do clima, usou um vocabulário fértil em alusões guerreiras e, por isso, ainda hoje falamos em "frente fria" ou "frente polar". Durante a Segunda Guerra, os cientistas Irving Langmuir e Vincent Schaefer colaboraram com a General Electric num programa para criar nuvens artificiais para dissimular o armamento, o qual se estenderia pelo pós-guerra e daria azo, em 1947, ao Projecto Cirrus, com vista a alterar a trajectória dos furacões e tufões. Durante a Guerra Fria, americanos e soviéticos gastaram fortunas em projectos militares para controlar o clima através das nuvens e, em 1957, o comité para esse efeito nomeado pelo Presidente dos EUA fez uma afirmação lapidar, infelizmente actual: "alterar o clima pode ser uma arma mais poderosa do que a bomba atómica". No decurso da "Operação Popeye", em 1966, a América despejou toneladas de químicos sobre os céus do Laos, e outros tantos no Vietname e no Camboja, para aumentar as chuvas e antecipar a chegada das moções com vista a perturbar os movimentos do inimigo. Não foi uma loucura do passado: em 1999, a Organização Meteorológica Mundial anunciou que 24 países levavam a cabo mais de uma centena de projectos de alteração do clima. A China, sempre ela, está na vanguarda, sendo o país que actualmente mais investe na manipulação climática, cerca de 40 milhões de dólares ao ano.."Por muito que os homens maldigam a chuva que lhes cai sobre a cabeça, é ela que lhes traz a abundância e esconjura a fome", disse São Basílio, o Grande, já no século IV. Infelizmente, terrivelmente, "os dados científicos mais recentes confirmam que não podemos contar com as nuvens para suprimir o aquecimento global", diz-nos, de forma terminante e cortante, o Professor Paulo Ceppi, climatologista do Imperial College, de Londres, numa obra há pouco publicada entre nós e que deveria ser de leitura obrigatória para todos, sem excepção: O Livro do Clima (ed. Objectiva, 2022), compilação concebida por Greta Thunberg, e que reúne dezenas de breves textos, todos elucidativos e esmagadores, da autoria dos melhores especialistas, sobre o desgraçado estado do planeta. Se tivesse que recomendar um livro do ano, pela actualidade e urgência, seria este, sem sombra (ou nuvem) de dúvida..É saboroso, mas em simultâneo trágico, ver a súbita conversão climática e o arrepiar de caminho dos que até há bem poucos anos gozavam com a Greta e desdenhavam o seu activismo ambiental. Na altura, irritados pelas proclamações inflamadas da catraia (que, em si mesma, reconheço, tem o seu quê de irritante), foram incapazes de ver para além dela, de tomar consciência do acerto do muito que ela dizia, mesmo que não gostássemos, nem gostemos, da forma arrogante e petulante como fala. Simplesmente, obviamente, a questão não estava na forma da miúda, mas na sua substância -- e, na substância, Greta Thunberg tinha e tem mais do que razão. Agora, há quem critique o radicalismo dos jovens que se pespegam às telas dos nossos museus, que atiram sopa e tomates aos inocentes quadros, num afã de criar escândalo que, além de contraproducente, é deveras estúpido (primo, a arte não tem culpa nenhuma do aquecimento global e é até, como atrás vimos, uma forma de admirar a natureza e de cuidar do seu futuro; secundo, se quiserem provocar a sério, façam-no junto das petrolíferas, nas gasolineiras, nos aeroportos). Não percebemos, porém, que isso é só o início de uma contestação que, com o passar do tempo, tenderá a agudizar-se e a tornar-se a cada dia mais intensa e violenta, numa espiral galopante. Não é descabido nem alarmista supor que, um dia destes, teremos quadros destruídos e incendiados ou coisas muito piores (What next, petrol on a Picasso? Threatening art is no answer to the climate crisis, escrevia há dias Jonathan Jones, no insuspeito The Guardian) Eis mais um efeito colateral, e obviamente condenável, da inércia de governos e cidadãos perante o aquecimento do planeta, o qual também dará azo a novas guerras, a migrações em massa, a graves disputas por água e por alimentos (há poucos meses, Espanha não cortou a água do Douro, falhando as cotas convencionadas em Albufeira? A tal propósito, que fez ou disse o nosso governo na recente cimeira ibérica?)..Adivinham-se, portanto, tempos bem plúmbeos, muitas e negras nuvens nos horizontes do futuro. Razão acrescida para que, no presente, admiremos a indescritível beleza da Glória da Manhã e dos cirros que têm pincelado os céus deste Outono, felizmente nebuloso e chuvoso. É o tempo dela, diziam os antigos da chuva. E nós, com eles, só temos de a festejar..Historiador.Escreve de acordo com a antiga ortografia.