A fronteira

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O centro de detenção de Steenokkerzeel fica comodamente nas traseiras do aeroporto. No caminho que ninguém vê e para onde ninguém vai. Se fores ao engano a dissimulação continuará. A ladear a estrada, arbustos e uma hera robusta vai-te transitar para a ideia de estares a passar por um parque ou por uma sede de uma multinacional com fito de sustentabilidade. Mas não. Do lado cego da estrada, por onde entram funcionários e detidos, não há equívocos, o que parece é.

Em Março de 1998, Samira Adamu atravessou esses portões sem saber que seria a sua última morada. Aterrou em Bruxelas em trânsito para Berlim, mas nunca mais saiu da capital europeia. Com apenas vinte anos, fugia de um casamento arranjado com um homem de 65 anos, já com quatro mulheres, tendo assassinado uma. Foi-lhe negado asilo.

Nos meses seguintes o espanto atingiu as hostes. A Bélgica ia mesmo deportar Samira à proveniência. Perdida a batalha legal, restava a mobilização de rua para impedir que Samira chegasse a horas aos voos agendados. Qualquer participante nessa agência seria preso e acusado de terrorismo. Numa das tentativas de deportação, foram mesmo os passageiros do voo da Sabena que se recusaram em levantar voo se a polícia continuasse a maniatar Samira da forma agressiva testemunhada por todos. O capitão expulsou os polícias e Samira do avião. Por fim, a 22 de Setembro de 1998, Samira foi morta, outra vez num voo da Sabena que não chegou a levantar, sufocada pelas almofadas que os polícias usaram sobre ela para que “não perturbasse” os restantes passageiros.

Não eramos ingénuos e por isso estávamos ali: em Bruxelas, Madrid ou Lisboa; por Samira, por todos e por nós. Sabíamos bem que a narrativa da União Europeia enquanto território humanista era uma narrativa a desocultar e escancarar perante todos. Se calhar a nossa única ingenuidade foi achar que uma possível mudança aconteceria na nossa geração. Não vai acontecer.

Quando falamos de imigração, já pouco discutimos as suas causas. Um esquecimento providencial. E não vamos ser desonestos. Não estamos a falar de expats, digital nomads ou de alunos estrangeiros dos currículos pós-grados da Nova SBE. Para esses, nenhuma conversa começa com um: “a imigração é um problema complexo”. Falamos de todos aqueles provenientes do continente africano, asiático e américa latina.

Para o continente europeu, no período pós-esclavagista, a primeira grande vaga de imigrantes desses países “terceiros” (nomenclatura da política pública) deu-se na segunda metade do século XX, acompanhando o processo de descolonização. O colonialismo deixou marcas. A demarcação de fronteiras fictícias, o uso de etnias contra etnias (dividir para reinar) e a delapidação dos recursos conduziu a guerras e à bancarrota dos estados recém-independentes. Esse processo também foi contemporâneo da reconstrução da Europa e de grande desenvolvimento económico. A Europa conseguiu a mão de obra barata, continuou proprietária dos recursos das suas antigas colónias (desta vez também com a participação americana) e ainda granjeou lucros da venda de armas.

Já no fim do século XX, houve transferência dos meios produtivos transformadores para os países de origem das imigrações. Suas cidades passaram a megalópolis onde milhões se dirigiram para disputar os ainda assim não suficientes trabalhos para a aspiração de tantos. Aí a mão de obra ficou ainda mais barata, as condições desumanas: esclavagismo moderno; com o acrescento de ter adulterado completamente modos de vida e possibilidades ecológicas. A solução foi continuar a emigrar para os países da europa Ocidental, onde a terceirização e financeirização da economia criou a necessidade de uma série de novos empregos logísticos de baixa qualificação, abraçando e promovendo - porque só assim o fazem voluntariamente – processos migratórios.

Posso ferir alguns iluminados, mas não! Imigrante não vem para a Europa para “bater pausa” de que mora na cidade da Torre Eiffel, do Big Ben ou do Átomo. Imigrante vem porque o processo hegemónico de que fazemos parte obriga-o a vir.

Sabemos e testemunhamos, tanto nos EUA como na Europa, que não é muro ou mar, que vai impedir o fluxo, muito menos decretos-lei. É um acto experimentado, conhecem-se bem as fórmulas. Neste processo todo, a jusante, a definição de leis de imigração é uma resposta a opções por dogmas políticos e económicos.

A 2 de Março, escrevi nesta coluna, interpretando o discurso da AD sobre imigração que apenas iam “dificultar o que já era difícil”. Pretendeu-se transformar a “manifestação de interesse” em ónus da situação actual, tanto para a falência dos serviços como do crescimento do papel das máfias e das situações de trafico humano. Na verdade, o principal responsável da situação actual é o Estado. A sua inoperância, voluntária ou propositada, é que empurrou os imigrantes para uma maior precaridade, abrindo veículos de alarme social erróneos e falsos, que criaram o contexto para a adopção destas novas medidas.

Possibilitar, de hoje para o futuro, que os imigrantes possam chegar ao país e permaneçam ilegais por não terem um visto garantido por uma estrutura consular qualquer, é uma oferta aos grandes grupos económicos e actividades de grande exploração, que através de subcontratações poderão ter toda uma produção baseada em remunerações ainda mais baixas. Isso também significa uma ausência de pagamentos à Segurança Social e outras transferências sociais que transitam para o lucro do agente económico. Nesse processo, também haverá diminuição das remunerações dos portugueses.

O discurso político anti-imigração e suas políticas acessórias, são apenas a bengala de certas elites económicas para um lucro ainda maior. Voltando a Samira e a todo este processo, o que define o humanismo de uma sociedade, não é o seu discurso, mas as suas práticas.

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