A flotilha, a líder e o Bloco em silêncio

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A líder do Bloco de Esquerda, Mariana Mortágua, foi detida pela marinha israelita ao largo de Gaza, após integrar uma flotilha humanitária que pretendia romper simbolicamente o bloqueio àquele território. A operação, previsível e pacífica, terminou com a interceção dos ativistas em águas internacionais. Os portugueses envolvidos, incluindo Mortágua, estão bem de saúde e deverão ser repatriados em segurança.

O gesto é politicamente relevante. A causa palestiniana tem sido uma bandeira histórica do Bloco de Esquerda, e a presença da sua líder numa ação internacional reforça essa coerência ideológica. Mas o momento escolhido levanta questões legítimas. Estamos a poucas semanas das eleições autárquicas - um ciclo decisivo para os partidos, sobretudo para aqueles que enfrentam dificuldades de afirmação territorial. O Bloco, que em 2022 tinha 19 deputados e hoje conta com apenas um, está fora do debate. E a ausência voluntária da sua líder, em plena campanha, é um sinal que não pode ser ignorado.

A política é feita de escolhas. E esta escolha revela prioridades. Nenhum líder partidário abandona o país durante um período eleitoral sem consequências. Por mais nobre que seja a causa internacional, o eleitorado espera presença, projeto e liderança. A ida de Mortágua para Gaza pode marcar um ponto de viragem - não apenas na sua carreira política, mas na própria trajetória do Bloco de Esquerda.

Mais surpreendente, porém, é o silêncio interno. A líder desaparece de cena e ninguém, na estrutura do partido, parece questionar o impacto dessa decisão. O Bloco, que outrora se orgulhava da sua capacidade de autocrítica e debate público, parece hoje resignado a uma lógica de sobrevivência. Que reflexão foi feita sobre os despedimentos polémicos de funcionárias grávidas e recém-mães? Que avaliação existe sobre a perda de influência junto do eleitorado jovem e urbano? Que estratégia está em curso para recuperar relevância política?

A comparação com Catarina Martins é inevitável. A antiga líder tinha uma capacidade rara de dialogar com eleitores fora do núcleo duro do Bloco - era vista como uma figura acessível, empática, moderada, capaz de construir pontes à esquerda. Mortágua, por sua vez, representa uma linha mais identitária, mais combativa, mas também menos agregadora. E isso tem custos eleitorais. Muitos dos votos que antes iam para o Bloco migraram para o Livre, liderado por Rui Tavares, que ocupa hoje o espaço da esquerda cosmopolita e institucional.

O que está em causa não é apenas uma ação internacional. É a capacidade de um partido se reinventar, de se adaptar ao país que tem, sem perder os valores que o fundaram. O Bloco de Esquerda precisa de se olhar ao espelho - e de decidir se quer continuar a ser uma força de protesto ou voltar a ser uma força de influência.

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