A festa à beira do abismo

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What you lovest well remains
The rest is dross
Ezra Pound

Do meu ponto de vista, de incurável francófilo, a Cerimónia de Abertura dos Jogos Olímpicos de Paris foi uma magnífica estetização de toda uma cultura, ousarei mesmo dizer, dessa coisa anacrónica a que chamamos Cultura.

Só Paris poderia escolher, para essa manifestação de poder que cada cerimónia destas encerra e transmite, a força de uma cultura, de uma arte e de um grande mito revolucionário.

Esta cerimónia não podia deixar indiferentes os que cresceram com este mundo. Mas no fim da festa, encerrada com o Hino ao Amor da Piaf, não pudemos deixar de pensar que estamos, como os romanos da decadência, numa grande festa à beira do abismo.

A grandiosa e original encenação, feita para mostrar toda uma cidade de cultura e o valor dessa cultura como afirmação da vida, resultou tão bem, que conseguimos esquecer que estes jogos se fizeram, desde a origem, para todos os assassinos poderem conhecer a festa da “Trégua Olímpica”, e não há assassinos de 1.ª e de 2.ªclasse...

Os barcos que percorriam o Sena não puderam deixar de evocar, a um melancólico como eu, dezenas de barcas de Caronte a levar pelo Letes a nossa civilização. Mas se tudo o que nós amámos vai aqui, por este rio acima, como cantava Fausto de um outro rio, e se tudo o resto é escória, como Ezra Pound disse nos dois magníficos versos que pus em epígrafe, quererá isso dizer que a cultura e a beleza passarão a ser a escória do mundo?

A beleza dos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936, foi a estetização da brutalidade do poder, como de alguma maneira, com outra subtileza e outro requinte, sucedeu nos recentes Jogos de Pequim, e falo obviamente das cerimónias de inauguração e encerramento, que é onde se transmitem as mensagens. Paris quis contrariar esta estetização da brutalidade do poder com a afirmação da beleza e do amor. Mas nós estamos (talvez prematuramente) como Adorno diante de Auschwitz: será possível exaltar coisas tão antiquadas como a beleza e o amor, num mundo dominado pelas imagens fortes de Karkhiv e de Gaza?

Essa imagem de uma beleza condenada a morrer é o legado desta extraordinária (em todos os sentidos) Cerimónia de Inauguração dos Jogos Olímpicos de Paris. O protocolo determina que o Chefe de Estado do país anfitrião não tem direito a discurso, pode apenas declarar abertos os Jogos. Esta regra, que muito contrariou Hitler em 1936, penso que, para Macron, na presente situação política da França, terá sido vista como uma benesse.

A luta contra os discursos de ódio e o instinto de morte, que tendem a dominar este nosso tempo de “nuvens baixas”, no dizer de Gastão Cruz, só pode fazer-se, como avisava Freud, através da cultura e do instinto oposto ao instinto de morte, que é Eros, o amor, o instinto de vida. A beleza e o amor podem não nos salvar, mas de algo nos poderão defender: do alastrar da escória!

“A morte é a mãe da beleza” escreveu o poeta Wallace Stevens. Da nossa própria morte, como da morte de uma cultura e dos seus valores. Por tudo isso, obrigado Paris!

Post Scriptum

A intrusão do mundo pagão na imagética cristã foi amplamente glosada por Camões, tal como o foi pelo pintor holandês do século XVII que inspirou uma cena controversa desta cerimónia. A sensibilidade woke pode vir donde menos se espera... 

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