A falácia do contexto

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Um ilustre filósofo novecentista escreveu que "a História não é solo que gere felicidade. Os tempos felizes são as páginas em branco na História", dizia ele. A tirada tem o seu ponto quando, diante de um acontecimento histórico como a guerra na Ucrânia, a História tem sido tão frequentemente utilizada como arma ou álibi para os que recusam condenar quem a ordenou. Vladimir Putin ocupou, invadiu e atacou um país soberano, democrático e de fronteiras internacionalmente reconhecidas, inclusivamente pela Federação Russa. A isto ‒ após uma tímida, quando existente, demarcação - uma soma de personalidades respondeu com apelos e convites ao estudo do "contexto histórico". Para o PCP, o "contexto" são as ações "da União Europeia e dos Estados Unidos da América". Para o Bloco de Esquerda, menos ecumenicamente, o "contexto" é o alargamento da NATO às ex-repúblicas soviéticas "no espaço vital russo". Em tom terno e grandiloquente sorriem: "Isto não começou hoje... É preciso procurar compreender..."

Tirando o facto de a Ucrânia - e nenhum outro ex-território da URSS - sofrer uma tentativa de conquista sem pertencer à NATO, os "contextos" merecem uma leitura. Não é mentira que a Alemanha e a França, na era de Merkel e Sarkozy, se opuseram veementemente à integração da Ucrânia na Aliança Atlântica, sendo ambos insuspeitos de simpatias comunistas. Também não é mentira que as aproximações da NATO a Kiev e a Tbilissi nunca foram unânimes na Administração Bush (outro insuspeito de cartilhas soviéticas) ou no Departamento de Estado de Obama. Mais do que isso, pelo menos nos últimos 15 anos o Kremlin fez saber em centenas de reuniões e fóruns públicos que se alguma vez a Ucrânia e a Geórgia se tornassem membros da NATO "não levariam consigo todo o seu território", sendo o dilema colocado dessa forma diante de diplomatas e chefes de Estado vezes sem conta: "Ou têm a NATO ou têm as vossas fronteiras. As duas não." Quando a entrada na NATO e na União Europeia ganhou letra de lei na Constituição ucraniana, em 2019, o futuro podia prever-se no passado -- ou assim apregoam os nossos contextualizadores.

Em sumário breve, o "contexto histórico" é mesmo este, meus amigos. E então? O passado é superior à vontade livre e legalmente expressa de um povo? As ameaças de Putin valem mais do que a liberdade de uma democracia com 44 milhões de cidadãos? Porquê? Quem lhe atribuiu esse poder? Vocês? As vossas simpatias? A Ucrânia representou algum perigo para a segurança russa que justificasse tamanha brutalidade? Ou "o contexto" é só uma falácia?

Se é como máscara para a nostalgia soviética e para revanchismo antiocidental, é um absurdo. Ninguém responsabiliza a Revolução Francesa pelos massacres de Napoleão no Egito e no Haiti. Ninguém culpa Jorge III ou Ben Franklin pela chacina das tribos índias a seguir à independência americana. Ninguém relativiza o terror de Mao com o nacionalismo chinês que as guerras do ópio provocaram décadas antes. Ninguém desvaloriza Hitler ou o Holocausto porque o tratado de Versalhes humilhou desmesuradamente os derrotados da Grande Guerra. Ninguém lembra o comboio a abarrotar de dinheiro em que a Alemanha enfiou Lenine como bode expiatório para o inferno que a sua chegada à Rússia instalou. E ninguém recorda o pacto germano-soviético de 1939 para diminuir os sacrifícios do Exército Vermelho na Segunda Guerra.

O contexto histórico, no fim do dia, não é mais do que isso: contexto. A esfera de influência da União Soviética, há 30 anos defunta, ou a visão do mundo dos czares, há um século desaparecidos, não servem para ignorar bombas de uma tonelada em maternidades. A História tem muitas forças, mas ilibar crimes e tiranos não é uma delas.

Os que hoje a usam pretendem apenas esconder que foram vencidos por ela.

Colunista

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