A fábula do trabalhador atropelado

É em tudo um caso de estudo e o que aprendemos não é bonito: um homem morreu a trabalhar e 10 dias depois não sabíamos sequer qual o seu estatuto laboral nem que auxílio garante a lei à família. Para quê perder tempo com isso se ia um ministro no carro que o atropelou e se o morto pode ser usado como arma política?
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Nuno Santos, 43 anos, atropelado na autoestrada, enquanto trabalhava, pelo carro oficial do ministro da Administração Interna.

Era isso que sabíamos, dez dias depois da sua morte, deste homem: a identidade do automóvel que o atropelou. Isso e a chusma de gestos políticos que se foram sucedendo à volta do caso. Como o comunicado do MAI que, com uma investigação a decorrer por parte de uma polícia sob a sua tutela, garantiu ter o morto atravessado inopinadamente a estrada e não existir sinalização dos trabalhos (informação que a Brisa desmentiu publicamente esta terça-feira) - sem porém nos certificar que o automóvel não circulava em excesso de velocidade. Ou o anúncio do partido que, depois de no sábado o Correio da Manhã fazer manchete com a viúva a dizer que as filhas do casal iam "morrer à fome" pela falta do salário do marido, veio nesta segunda-feira dizer ter criado "um fundo" para apoiar a família.

Sucede que, independentemente das responsabilidades de outra ordem - por eventual condução perigosa - que possam existir na sua morte, Nuno era um trabalhador a trabalhar quando morreu. Pelo que à partida, antes de qualquer outra consideração ou averiguação sobre as circunstâncias da sua morte, é de um acidente de trabalho que se trata. E os acidentes de trabalho preveem a responsabilização dos empregadores, via seguros obrigatórios, pelas despesas, compensações e pensões dos sinistrados e/ou suas famílias. É isso que determina a lei laboral - aquela que muitos dos que procuram usar a morte de Nuno, nomeadamente um certo demagogo de extrema-direita, propõem eliminar, em total liberalização das relações de trabalho, para quiçá as substituírem por caridade à la carte.

É pois bastante extraordinário que durante dez dias, de 18 de junho, dia da morte, até esta segunda 28, nada tenhamos ouvido da parte das empresas responsáveis pelos trabalhos na A6 - de limpeza da vegetação das bermas - em que se ocupava o trabalhador Nuno: a Arquijardim, que o contratava diretamente e cujo nome pouco apareceu nas notícias até agora, e a Brisa, contratante indireta. Mais que não fosse para nos dizerem qual o vínculo contratual do malogrado trabalhador, se o processo relativo ao acidente de trabalho está já em marcha - como deve estar - e se estão a dar algum apoio à família até o assunto, que implica a intervenção da seguradora e do tribunal (é assim em casos de morte por acidente de trabalho), se resolver.

Poder-se-ia dizer que não falaram por ninguém lhes ter perguntado, mas quando liguei à Arquijardim, ao fim da tarde de segunda, e perguntei essas duas coisas básicas, não houve resposta. Até o nome dos responsáveis da empresa recusaram dizer, como se fosse segredo (é só ir ao portal do Ministério da Justiça e consultar os atos societários). Poucas horas depois, no entanto, surgia no site da SIC, sem atribuição de fonte, a notícia de que esta empresa está a pagar à família o vencimento do trabalhador - que era seu efetivo há dois anos - e se encarrega das despesas do enterro "enquanto se processa o apuramento das responsabilidades da parte das seguradoras".

Não sabemos de quando data a decisão da Arquijardim e quando informou a viúva, ou se soubemos antes dela - mas é a primeira boa notícia neste caso. Porque um acidente laboral implica um processo que, apesar de urgente, será sempre demasiado moroso para uma família privada de rendimento. E se a lei prevê que possa ser atribuída, pelo tribunal (se não houver acordo à partida),uma pensão provisória, a ser adiantada pelo Fundo dos Acidentes de Trabalho, até à fixação da que deve ser paga pela seguradora, tal implica não existir contestação em relação à caracterização do sinistro como acidente de trabalho. Já foi noticiado, porém, na sequência do citado comunicado do MAI, que a seguradora envolvida quer perceber se houve da parte do trabalhador um comportamento, negligente ou temerário, que possa eximi-la de pagar.

Essa possibilidade - de a família de Nuno Santos ter de enfrentar um longo processo de averiguação por parte da seguradora e o contencioso que poderá seguir-se - demonstra que há muito mais neste caso para questionar do que a velocidade a que ia o carro que transportava Eduardo Cabrita e se este deve ou não demitir-se se se provar que houve condução perigosa e, consequentemente, que o comunicado do MAI falseia os factos. Mas, claro, a proteção que a lei confere às vítimas de acidentes de trabalho é um assunto complexo e maçudo, que exige estudo e não faz manchetes sexy nem se presta a retóricas populistas, muito menos de partidos que combatem os direitos dos trabalhadores.

Como Ihor Homeniuk, cuja morte só ganhou dimensão mediática e política quando pareceu que o ministro podia cair, Nuno Santos e a sua família não durarão um fósforo na via rápida do oportunismo.

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