A ética, as vítimas inocentes, Deus
Pela tomada de consciência da finitude e da pergunta que constitutivamente lhe está associada - de pergunta em pergunta, o ser humano deparar-se-á com a pergunta pelo Fundamento último de tudo e pelo Sentido último -, Deus virá sempre à ideia.
A questão de Deus impõe-se igualmente por causa da ética, das vítimas inocentes e da esperança. Lá está sempre Immanuel Kant - celebra-se este ano o terceiro centenário do nascimento - com as suas perguntas, as de qualquer ser humano atento: “O que posso saber? O que devo fazer? O que é que me é permitido esperar?” A última está vinculada à religião: cumprindo o seu dever, o Homem torna-se digno da salvação de Deus.
A autonomia da razão prática, que vincula universalmente todos os homens, e para a qual Kant deu um contributo decisivo, é uma conquista definitiva da Humanidade: a moral é uma forma de auto-obrigação. Mas a questão ergue-se em todo o seu abismo, quando somos confrontados com a questão ética no seu limite. Edward Schillebeeckx apresenta precisamente o exemplo dramático do soldado que, numa ditadura e sob pena de morte, recebe a ordem de matar um inocente, só porque ele é judeu, comunista ou cristão. Por motivos de consciência, o soldado recusa executar a ordem, ficando assim numa situação que toca as raias do absurdo: de facto, ele próprio será morto e outro matará o inocente. Aparentemente, ninguém beneficiou desta acção ética absolutamente digna.
Como responder à pergunta formulada por Freud, ao confessar: “Quando eu me pergunto por que é que sempre procurei com seriedade ser solícito, e quanto é possível ser bondoso para com os outros e por que é que o não deixei de ser quando verifiquei que se é prejudicado por isso e massacrado, pois os outros são brutos e infiéis, não conheço qualquer resposta?”
Voltando ao exemplo de Schillebeeckx, estamos perante uma aporia: por um lado, somos incondicionalmente apelados pelo respeito para com o outro; por outro, não há qualquer garantia de que o mal - a violência e a injustiça, a tortura e a morte - não seja a última palavra sobre as nossas existências finitas no mundo.
A pergunta torna-se, pois, inevitável: por que é que devo continuar a respeitar incondicionalmente o outro, embora ele seja também fonte de injustiça e violência? Há apenas dois caminhos de resposta eticamente responsável: a resposta religiosa e a resposta que se reclama de uma acção heróica a favor do Humanum. Ambas se apoiam na esperança de que, contra todas as aparências fácticas, a justiça triunfará sobre a injustiça, o Humanum sobre a desumanidade.
Jean-Paul Sartre, no seu leito de morte, dizia “Eu ainda continuo a confiar na humanidade do Homem.” No entanto, o humanista ateu/agnóstico não pode dar nenhum tipo de garantia de que a sua esperança, exclusivamente fundada ético-autonomamente, se concretize. De qualquer forma, para as vítimas que já caíram e para aquelas que no futuro continuarão a tombar, não há salvação. O Homem não pode, por si mesmo, operar a sua plena salvação: a uma total auto-libertação emancipatória, à maneira, por exemplo, da situação ideal de fala contrafáctica, de Jürgen Habermas, opõe-se o facto de o Homem ser para os outros não só graça, mas também violência e aniquilação, numa história de maldade que parece não ter fim: “mistério da iniquidade”, dizia S. Paulo.
Por isso, Theodor Adorno, da Escola Crítica de Frankfurt, escreveu que a esperança tem de incluir a todos e que, a haver justiça, ela teria de ser justiça também para os mortos . Neste sentido, o seu amigo Max Horkheimer, outro fundador da Escola Crítica, escreveu: “Toda a pretensão de fundamentar a moral na inteligência terrena e não num Além (...) constrói sobre ilusões harmonizadoras. Em última análise, tudo o que se relaciona com a moral tem a ver com a teologia”, sendo a teologia - “exprimo-me com toda a precaução - a esperança de que, não obstante a injustiça que caracteriza o mundo, não acontecerá que ela, a injustiça, seja a última palavra.” Neste sentido, também Walter Benjamin insistiu que a solidariedade com os mortos, concretamente com as vítimas inocentes, não permitia conceber a história “a-teologicamente”.
Também o crente é obrigado a empenhar-se incondicionalmente pelos outros, em caso-limite até ao martírio, e não precisa de Deus como fundamento imediato do seu agir ético. A entrega incondicionada do mártir não tem como motivo a conquista da recompensa eterna: na fundamentação autónoma da ética, trata-se do Humanum absolutamente digno e da esperança da justiça sobre a injustiça - et si Deus non daretur (como se Deus não existisse).
No entanto, o crente sabe que a sua acção é mais forte do que a morte, e, acreditando em Deus, considera a fé no triunfo do bem sobre o mal, da justiça sobre a injustiça, como experiência do meta-humano e meta-ético, que os homens na sua história intramundana não podem realizar. Desta forma, o mal e o absurdo não são anulados, nem sequer racionalmente compreendidos (neste sentido, Hans Albert tinha razão quando falava do “mito da razão total”), mas, para o crente, não têm a última palavra: sendo Deus a fonte e o fundamento transcendente da ética, há esperança para as vítimas e para os mortos, que, fora desta perspectiva, ficam definitivamente anulados na História. O apelo a Deus é vivido no empenho ético e na fé de que a justiça é mais forte do que a injustiça, na plenitude da vida.
Escreve de acordo com a antiga ortografia.