A eternidade do mal

Publicado a

Visitando em Setúbal o magnificamente restaurado Museu do Convento de Jesus, encontrei uma impressionante coleção de estampas chinesas, representando as torturas usadas no século XVIII naquele país. 

Primo Levi, comentando a famosa asserção de Adorno de que “não poderia haver mais poesia depois de Auschwitz”, diz que está além dos quadros da mais cruel imaginação humana ver, como ele viu em Auschwitz, o que os seres humanos são capazes de fazer uns aos outros. 

Comparamos mentalmente o que os alemães foram capazes de fazer aos judeus no século XX com o que os chineses eram capazes de fazer uns aos outros no século XVIII. Os nossos autos de fé, em que os judeus eram queimados vivos, aos olhos de uma assistência entusiasmada, seriam assim tão diferentes do Holocausto? 

Eram. O Holocausto nazi tinha como diferença radical, em relação à tradição antissemita de que provém, uma conceção absoluta da raça e da sua pureza, que levou à tentativa de eliminar fisicamente todas as pessoas judias, acusadas de fomentar todos os males do mundo, só pela sua existência. Nunca nenhum pogrom, nenhum auto de fé, alcançou a dimensão universal e a sinistra lógica administrativa do Holocausto. 

 E, contudo, a sensibilidade histórica leva-nos a lembrar que, em que pese a Adorno, a desumanidade não começa com os nazis: eles foram o rosto moderno, burocrático e civilmente organizado da monstruosidade humana que sempre acompanhou a História. 

Hoje assistimos à guerra de Israel contra os palestinianos, uma guerra que dura desde a fundação daquele Estado.  

Continuamos a defender a solução dos dois Estados, mas verificamos que o Estado de Israel está claramente empenhado em destruir a possibilidade da criação desses dois Estados, ao decidir ocupar a Faixa de Gaza, após um massacre continuado da sua população, e ao continuar a implantar e a defender os colonatos na Cisjordânia. 

A eliminação programada do povo palestiniano, que está em curso, não apaga nem desculpa as barbaridades do Hamas. Mas é uma limpeza étnica que está a decorrer sob os nossos olhos e vem mostrar-nos, uma vez mais, que, como assinalava Primo Levi, não há limites para o mal que os seres humanos são capazes de fazer uns aos outros. 

Mais do que a banalidade do mal, trata-se aqui da eternidade do mal. 

 Diplomata e escritor

Diário de Notícias
www.dn.pt