A estirpe portuguesa

Na quinta-feira, Portugal ultrapassou a Suécia em número de mortos (11 608 contra 11 520). Quando terminou o primeiro confinamento geral, eu fazia parte dos portugueses que se sentiam confortáveis pelo país não ter apostado na estratégia da "imunidade de grupo", que, na altura, se traduzia numa mortalidade sueca mais de três vezes superior à portuguesa. Hoje, quando Portugal apresenta números de contágios e de mortos que desenham curvas exponenciais semelhantes a mísseis balísticos prestes a sair da atmosfera, parece que Portugal assumiu afincadamente a opção de expor a sua população ao vírus, não esperando pelas vacinas. Só entre sábado (23) e quinta-feira (28), em apenas seis dias, somam-se 1688 mortos.

Em 2020, para acumular um número semelhante de vítimas mortais, foi preciso percorrer o calendário de 2 de março (início da pandemia no nosso país) a 14 de julho. A mortalidade de seis dias, agora, corresponde à mortalidade de 139 dias em 2020! Esta tamanha hecatombe, que ainda se vai intensificar, não corresponde a nenhuma orientação deliberada, mas antes é o atestado da ausência de uma política sanitária à altura do gigantesco desafio da pandemia. Não é a política que domestica a pandemia, mas esta que flagela os corpos, engole as vidas e torna patéticos todos os discursos que pretendem simular estar a situação sob controlo.

Nestas semanas tenho sentido o sofrimento e a angústia de familiares, amigos, colegas e desconhecidos. Sei de famílias acantonadas em pequenos apartamentos, tentando criar zonas de isolamento, contra as leis básicas da física de fluidos. Com quase 200 mil casos ativos, milhares de pessoas com dificuldades respiratórias permanecem em suas casas, ou nos seus lugares de refúgio, pois sabem que, agora, a maioria dos hospitais pouco lhes pode oferecer, apesar da heroica dedicação de médicos, enfermeiros e auxiliares. Este é o tempo de cada um ficar em casa e defender a sua saúde, tempo de cada um fazer parte da solução e não do problema.

A tragédia portuguesa é de tal magnitude que as responsabilidades serão mais tarde ou mais cedo apuradas. Haverá teses académicas, estudos, obras de ficção. A maioria delas será produzida por autores estrangeiros. O colapso luso entrará, pela negativa, nos livros de estudo e nos manuais de Saúde Pública de todo o mundo. Da nossa amarga experiência será extraída uma sabedoria negativa, de alcance universal, sobre esta queda numa hemorragia demográfica sem paralelo desde a gripe espanhola de 1918-1919. Mas as contas e os estudos ficarão para depois.

Agora é preciso dar todo o apoio aos profissionais de saúde, aos doentes e suas famílias. A morte em massa, os enterros sumários, são fonte de um stress traumático, que deixa sequelas dolorosas e duradouras para os sobreviventes. Seria importante que ninguém tentasse antecipar-se ao juízo da história, enquanto esta se abate sobre todos nós como um edifício decrépito, em irreversível ruína.

O primeiro-ministro escusa de culpabilizar a estirpe inglesa pelos nossos males, usando a ciência como álibi para escamotear o modo como desprezou essa mesma ciência, nas suas desastrosas decisões de dezembro e início de janeiro. A única estirpe que nos deveria preocupar, e que se desnudou com inteireza nesta crise, está entre nós há muito: trocar a verdade dura pela mentira lisonjeira; a disciplina pelo improviso; a responsabilidade pela cumplicidade negligente... Nascemos aqui. E não foi ontem.


Professor universitário

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