No pensamento marxista, a identidade nacional nunca foi vista com bons olhos. Marx, Engels e Lenine encaravam as nações modernas como produtos do capitalismo e da burguesia. À luz do marxismo, a identidade nacional é uma construção histórica utilizada para organizar os Estados como comunidades políticas e unir os cidadãos acima das classes sociais. Ao fazê-lo, apaga a distinção entre capitalistas e trabalhadores e enfraquece a luta de classes. Daí que os teóricos marxistas olhassem com desconfiança para a identidade nacional, vendo-a como um instrumento ao serviço da burguesia.Estaline, talvez o mais pragmático dos ideólogos marxistas, como demonstra a sua bem sucedida carreira revolucionária (de assaltante de bancos para financiar a causa, a burocrata todo poderoso e, depois, a líder absoluto da URSS), compreendeu o que estava em causa e tratou a “questão nacional” como parte da luta de classes e da revolução socialista. Num ensaio escrito em 1913, o revolucionário georgiano defendia a autodeterminação dos povos, mas rejeitava os nacionalismos que fragmentassem a unidade proletária. Daí a célebre máxima: “Proletários de todas as nações, uni-vos!”Assim, apesar da crítica ao nacionalismo burguês, a União Soviética cedo apoiou os movimentos de libertação contra as potências coloniais. Nestes casos, a luta nacional era vista como progressista, porque enfraquecia o domínio colonial e podia abrir caminho ao socialismo. Era uma abordagem pragmática: para os comunistas, a identidade nacional podia ser útil em determinados momentos históricos, mas nunca era um fim em si mesma..Esta visão da identidade nacional constitui uma das diferenças entre o marxismo e velha esquerda oitocentista, que era ainda romântica e nacionalista. Em Portugal, a Geração de 70 - Antero de Quental, Oliveira Martins, Teófilo Braga e outros - acreditava na regeneração da pátria como missão histórica. O nacionalismo era visto como motor de progresso e modernização e não como instrumento de dominação por parte das elites. Ironia da História: os ideais nacionalistas passaram gradualmente, ao longo de décadas, da Esquerda para a Direita. O hino nacional instituído pela República, consagrado depois pelo Estado Novo e hoje venerado por muitos, incluindo pela extrema-direita, nasceu como uma canção patriótica da esquerda republicana, onde se apelava à resistência ao Ultimato britânico de 1890. “Contra os bretões, marchar, marchar”, rezava a primeira versão de A Portuguesa. Para o marxismo, a identidade nacional é um meio para atingir um fim, mas para os republicanos do século XIX era uma essência a preservar e a reforçar..Mais de um século depois, os herdeiros dos republicanos evitam falar de patriotismo, enquanto os do marxismo continuam a lidar mal com a identidade nacional. A política identitária substituiu, em muitos discursos, a velha luta de classes, introduzindo uma tensão permanente entre universalismo e particularismo. Se o marxismo via a identidade nacional como secundária face à classe, a política identitária desloca o foco para o género, a etnia, a sexualidade, a origem ou a religião. Isto desafia a ideia do proletariado como sujeito coletivo universal e torna ainda mais difícil compatibilizar a questão nacional com a causa social, a menos que seja um meio para atingir o objetivo de destruir o sistema capitalista internacional.É por isso que o Bloco de Esquerda, o Livre e setores do PS defendem com firmeza a autodeterminação do povo palestiniano ou os direitos das minorias, mas raramente se pronunciam sobre a identidade nacional portuguesa. Ainda esta semana, Catarina Martins afirmou em entrevista ao Diário de Notícias que, para si, estar integrado no nosso país é partilhar os valores expressos na Constituição da Republica Portuguesa, passando assim ao lado de algumas características que distinguem uma nação de um mero apartado postal: a continuidade histórica, territorial e cultural. Ora, Portugal é um país com quase 900 anos de existência, que nasceu na Idade Média e que mais tarde se afirmou como grande potência marítima. É um país com uma História e uma cultura riquíssimas, para as quais contribuíram pessoas vindas de todo o mundo, como fez questão de lembrar Catarina Martins na mesma entrevista. Mas é um país que tem uma identidade nacional que vai muito além de qualquer constituição ou regime político. A maioria dos portugueses, se for questionada sobre o que significa ser português, dificilmente responderá que é identificar-se com a Constituição. Será mais provável que as respostas passem pela língua, as tradições, as normas de convivência social ou a cultura judaico-cristã, que são elementos de continuidade histórica e cultural que nos definem como povo há quase nove séculos. A ameaça à democracia e à sociedade abertaA Esquerda há muito que tem vozes no seu seio que alertam contra a política Identitária. Eric Hobsbawm, historiador marxista da velha escola, já alertava em A Política Identitária e a Esquerda (1996) que a fragmentação em múltiplos grupos identitários enfraquece a capacidade de mobilização universal contra o capitalismo. Sem projeto comum, a esquerda perde força e a democracia fica vulnerável. Sociedades abertas, que dependem de consensos mínimos e de uma identidade coletiva partilhada, podem ser corroídas por divisões identitárias que alimentam populismos e nacionalismos exclusivistas.Num tempo em que a imigração é cada vez mais contestada e os discursos nacionalistas ganham terreno, esta fragilidade torna-se perigosa. Ao insistir numa identidade fundada apenas na Constituição e ao permanecer focada na política identitária, a esquerda arrisca perder a ligação com setores populares que se reconhecem sobretudo na continuidade histórica e cultural da nação. O resultado é a fragmentação da esquerda, a polarização da sociedade e o enfraquecimento da democracia.A questão nacional está, por isso, de regresso com força redobrada. E obriga-nos a perguntar: deverá a esquerda moderna regressar a uma abordagem mais universalista, capaz de responder aos anseios das pessoas comuns - incluindo a defesa da nossa cultura e do nosso modo de vida -, sem abdicar de princípios essenciais como o respeito pelas diferenças e pelos Direitos Humanos das minorias e dos migrantes?Ao contrário do que se possa pensar à primeira vista, este é um tema que interessa a todos os democratas, porque a democracia parlamentar precisa de uma Esquerda que ofereça soluções e seja uma alternativa credível. Sem uma Esquerda capaz de falar com todos e para todos, a democracia ficará, cada vez mais, refém dos populismos e dos extremismos.Diretor do Diário de Notícias