Trabalhamos nos bastidores do SNS, mas o nosso trabalho decide tratamentos e salva as vidas de muitos doentes. Somos cada vez menos e o país precisa de mais. Esta é a história dos médicos especialistas em Anatomia Patológica.Admitamos que a anatomia patológica não dá séries de televisão empolgantes como os cirurgiões de urgência. Mas enquanto uns salvam vidas com drama e adrenalina, nós salvamo-las em silêncio, ao microscópio.E neste dia 12 de novembro, Dia Internacional da Anatomia Patológica, talvez seja altura de sair dos bastidores recônditos dos hospitais. Peço uns minutos da sua atenção: vamos mostrar porque é que esta especialidade “aborrecida” é absolutamente vital para a saúde em Portugal.O diagnóstico que muda tudo. Quando um doente recebe um diagnóstico de cancro e o médico lhe explica qual o tipo exato de tumor, em que estádio se encontra e qual o melhor tratamento, há sempre um patologista por trás dessa informação. São estes médicos especialistas que analisam as biópsias e as peças cirúrgicas, identificam biomarcadores e características moleculares que permitem personalizar as terapêuticas.Não fazemos consultas nem cirurgias, mas o nosso trabalho determina se um doente vai fazer quimioterapia, imunoterapia ou radioterapia. Determina, muitas vezes, se o doente vai sobreviver.A anatomia patológica é fundamental no percurso clínico de uma grande maioria dos doentes. Mas esse trabalho invisível enfrenta hoje uma ameaça: estamos a ficar sem médicos desta especialidade.A crise que ninguém vê. Atualmente, existem apenas 362 anatomopatologistas em Portugal. Cerca de 50% destes têm idade acima dos 60 anos e só cerca de metade dos especialistas trabalham no Serviço Nacional de Saúde (SNS).Façamos as contas: não há anatomopatologistas suficientes para a nossa população. E a tendência é que esta falta de especialistas vá agravar-se nos próximos anos.O problema tem duas faces. Por um lado, não estamos a formar médicos especialistas ao ritmo necessário para acompanhar o aumento consistente do volume de cuidados de saúde – mais consultas, mais cirurgias, mais diagnósticos significam inevitavelmente mais trabalho para os serviços de Anatomia Patológica.Por outro, assistimos a uma fuga de especialistas do SNS para hospitais e laboratórios privados. Fazem-no atraídos por melhores condições de trabalho e de carreira.O resultado para o SNS? Serviços desfalcados, impossibilidade de subespecialização, pressão sobre os profissionais que ficam e, inevitavelmente, impacto na qualidade e no tempo de resposta aos doentes. É um problema grave que a tutela da Saúde não pode continuar a ignorar.O futuro já está a acontecer. Mas há também boas notícias. A anatomia patológica está no centro de algumas das mais promissoras revoluções na medicina.A inteligência artificial chegou aos nossos microscópios. Com a patologia digital, algoritmos ajudam-nos a identificar neoplasias, classificá-las e graduá-las com maior precisão e rapidez.Não se trata de substituir o médico, mas de potenciar o seu trabalho, diminuir a margem de erro e aumentar a segurança dos doentes. É tecnologia ao serviço da vida, aliada à competência técnico-científica dos médicos especialistas.Paralelamente, a investigação em anatomia patológica tem crescido exponencialmente. A título de exemplo, a descoberta de novas moléculas nas células tumorais permite não só avaliar melhor o prognóstico, mas também identificar alvos para novos fármacos que estão a revolucionar o tratamento oncológico.Estamos na linha da frente da medicina de precisão. Mas aposto que quem lê estas linhas desconhecia.O apelo neste Dia Internacional da Anatomia Patológica. A anatomia patológica pode não ser a especialidade mais mediática da medicina. Não temos o glamour das urgências nem a visibilidade da cirurgia.Mas somos essenciais. E precisamos urgentemente de atenção: mais vagas de formação, modernizar os laboratórios no SNS, valorização da carreira.Porque, no fim do dia, quando um doente oncológico inicia o tratamento certo e tem uma segunda oportunidade de vida, há sempre um patologista que tornou isso possível. Em silêncio, ao microscópio, longe dos holofotes.Talvez não dê para fazer uma série de televisão, mas dá para salvar vidas. E isso, admitamos, é bem mais importante. Presidente da Sociedade Portuguesa de Anatomia Patológica.Médica Patologista no IPO Porto