A era da vulnerabilidade sistémica

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A pergunta que muitos fazem em dezembro de 2025 é se haverá finalmente paz na Ucrânia. Mas talvez seja a pergunta errada, porque mesmo que um acordo surja, imposto por Washington, aceite por Kiev e tolerado por Moscovo, dificilmente será paz. Será uma pausa instável, condicionada pela força e incapaz de produzir segurança duradoura. E este não é um caso isolado: é o sintoma de algo maior. Entrámos na era da vulnerabilidade sistémica.

Vivemos num tempo em que crises já não são episódios: são estruturas. A guerra é simultaneamente militar, energética, financeira, tecnológica e informacional. O que começa num território repercute-se noutros, sem fronteiras nem escalas fixas. Cada conflito regional funciona como um sismo que desloca placas inteiras do sistema internacional.

A guerra em Gaza tornou isto evidente. O conflito não é apenas local: reconfigura equilíbrios no Médio Oriente, fragiliza corredores marítimos essenciais, altera preços globais de energia e alimenta a radicalização política em várias latitudes. Cada decisão tática tem efeitos estratégicos globais. Tal como na Ucrânia, a ideia de “conter” o conflito é hoje uma ilusão.

Simultaneamente, o Sul Global deixou de ser um observador distante. É um ator central, assertivo, que não aceita enquadramentos estratégicos desenhados em Washington ou Bruxelas. Índia, Brasil, África do Sul, Indonésia ou Turquia movem-se com lógicas próprias, redefinem alianças e contestam hierarquias históricas. Esta voz multipolar não quer escolher lados: quer escolher condições. E isso aumenta a imprevisibilidade do sistema, ao mesmo tempo que revela a dificuldade europeia em projetar influência num mundo onde o poder se redistribui e se fragmenta.

Neste contexto, a Europa tem-se mostrado lenta, reativa e, por vezes, ausente. Não esteve à altura do tempo nas respostas à agressão russa, tarda em definir uma posição coerente sobre Gaza ou o médio oriente e mantém uma leitura excessivamente eurocêntrica do que hoje são os grandes alinhamentos globais. Falta visão integrada e falta agilidade: dois elementos críticos na era da interdependência total.

E é aqui que surge a verdadeira questão: estamos preparados para um mundo em que tanto a paz como a guerra transbordam fronteiras? Onde a segurança não depende apenas de tanques ou tratados, mas da estabilidade de redes elétricas, do acesso a chips, da proteção de cabos submarinos, da resiliência financeira e da capacidade de mitigar desinformação em larga escala?

A vulnerabilidade é sistémica porque os sistemas estão todos ligados. Gaza afeta o Indo-Pacífico; a Ucrânia afeta a energia global; o Sul Global afeta o equilíbrio político nas instituições internacionais. A arquitetura do mundo tornou-se sensível a cada impacto e cada impacto desencadeia muitos outros.

A era da vulnerabilidade sistémica não é um destino, mas um aviso. Ou construímos um novo modelo de resiliência, europeu e global, baseado em capacidade, rapidez, interoperabilidade e visão estratégica, ou continuaremos a viver num tempo em que cada crise é sempre o prelúdio da próxima. A escolha ainda é nossa.

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