A discussão literalmente rasteira

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Suponha o leitor que é um bolsonarista adepto de golpes de estado e fã de ditaduras militares. A dada altura, descobre que o país onde vive anda a proibir os primeiros e, por consequência, as segundas. Naturalmente, a sua vida torna-se um longo tédio democrático e constitucional. 

Há, entretanto, alguma solução, dentro dos limites democráticos e constitucionais, para se distrair? Sim, e até foi muito usada e abusada pela esquerda nos últimos tempos: chama-se boicote. Há que boicotar, boicotar muito, boicotar sempre, boicotar a torto e a direito, boicotar “adoidado”, para usar um adjetivo muito local. 

O boicote não mata, como num golpe, nem tortura, como numa ditadura, mas, pelo menos, prejudica, incomoda, chateia. E alivia a raiva permanente que queima o peito do “homem de bem”.

Em 2023, já foi contado aqui neste espaço, Felipe Neto, influenciador digital crítico de Bolsonaro, tornou-se o rosto dos chocolates Bis. Com aquele entusiasmo alienado só ao alcance dos membros de seitas, os bolsonaristas filmaram-se então a deitar os Bis no lixo e a comprar o concorrente KitKat. Pelo meio, porém, alguém recordou uma campanha moderninha da KitKat, com direito até a beijo gay, e a turba fez tilt.

Um ano antes, o alvo do boicote era a TV Globo, supostamente anti-Bolsonaro. No Mundial de 2022, a extrema-direita optou então por ver os jogos na Cazé TV, canal de youtube com os direitos do evento. Sucede que, já este ano, a Cazé TV satirizou as buscas policiais à casa de Bolsonaro e deixou, outra vez, o bolsonarismo confuso. “Cancelei a minha inscrição na Cazé TV. Querem audiência, vão ter boicote”, disse um ex-espectador da Cazé TV - e ex-espectador da TV Globo - que por este andar terá de acompanhar o Mundial-2026 pela rádio.

Por esses dias, o “Fuga Café”, um bar pequenino de Curitiba, também brincou nas redes sociais com a prisão de Bolsonaro. Más notícias para o vizinho “Fubá Café”, vítima de enxurrada de avaliações negativas de bolsonaristas no Google que não distinguem um “g”, de golpista, de um “b”, de bolsonarista.

Eis-nos chegados então ao último boicote, ao boicote do natal de 2025. Num anúncio das Havaianas, símbolo nacional que exporta para 106 países e vende 250 milhões de pares por ano, a atriz Fernanda Torres, rosto da campanha, lê o seguinte texto: “Desculpa, mas eu não quero que você comece 2026 com o pé direito. Não é nada contra a sorte. O que eu desejo é que você comece o ano com os dois pés: os dois pés na porta, na estrada, onde você quiser. Vai com tudo, de corpo e alma, da cabeça aos pés!”.

O que ela - perigosa esquerdista - foi dizer. Não entrar com o “pé direito” em ano de eleições foi uma mensagem subliminar de apoio à esquerda, determinou um grupo de deputados federais esquizofrénicos, incluindo Eduardo Bolsonaro, que se filmou logo a deitar as havaianas dele no lixo. 

Pois é: metade da extrema-direita do Brasil começa o ano descalça. E a outra metade com aparelhos de vigilância policial presos ao tornozelo.

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