A dignidade de parar o País

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Há momentos na vida de um povo em que o dia-a-dia se torna demasiado apertado para caber nos horários, nos salários e nas expectativas de quem trabalha. Quando o mês é mais longo do que o salário, quando o diálogo político se esgota e quando a desigualdade se agudiza nos corredores de decisão, resta recorrer à tomada de posição coletiva: a greve geral.

Assistimos, diariamente, a situações desesperantes marcadas pela precariedade: trabalhadores com salários em atraso ou mesmo sem receber. São mães que não têm como alimentar os seus filhos, pagar a sua renda de casa. E Portugal não é caso isolado: em França, em Itália, vemos situação idêntica: trabalhadores com vidas em suspenso, no limite da sobrevivência, com direitos ameaçados e que vieram à rua mostrar a sua força.

O atual código do trabalho nunca foi entrave à economia e uma saudável relação entre trabalho e vida pessoal tem bons resultados comprovados. O “pacote laboral” agora proposto pelo governo PSD/CDS, no essencial acompanhado pela IL e CH, constitui um dos maiores ataques à dignidade de quem trabalha. Atinge direitos fundamentais como a negociação coletiva, a liberdade sindical e o direito à greve. Agrava a precariedade ao alargar os contratos a prazo, facilita despedimentos permitindo contratar de imediato em outsourcing para a mesma função e elimina a obrigatoriedade de reintegração após ganho de causa em tribunal pelo trabalhador. Particularmente grave é a redução do descanso para quem trabalha por turnos e o fim da possibilidade de recusa de turnos noturnos ou de fim de semana para quem tenha filhos menores de 12 anos. É não ter a noção do impacto do trabalho por turnos na vida, na saúde mental e na família de quem o faz. Parece que entramos numa máquina do tempo e regressamos ao sistema laboral do século XIX, liberal e selvagem.

Vende-se, para justificar tudo isto, a narrativa da modernização e equilíbrio, mas trata-se do contrário: uma visão que reduz desenvolvimento a crescimento económico ilimitado, feito à custa dos trabalhadores e dos recursos naturais. É uma lógica política já amplamente contestada, mas que continua a servir a economia neoliberal, ampliando desigualdades e destruindo o planeta. De facto, está em causa o próprio modelo económico.

A greve geral não é um capricho dos sindicatos, como Governo e patronato insinuam. Quem faz greve são os trabalhadores. É o reconhecimento de que o problema já não é individual, mas estrutural – e estruturas só mudam quando são abaladas.

Pergunta-se muitas vezes: “mas uma greve resolve alguma coisa?”, procurando até, Governo e alguns setores, reduzi-la a um incómodo, instigando trabalhadores contra trabalhadores. A resposta é: “Sim”. Nem sempre de imediato, mas a história mostra que quase todos os direitos laborais – salário digno, descanso, segurança, proteção social – nasceram porque alguém teve coragem de parar para que o mundo avançasse.

Uma greve geral nunca termina no dia em que acontece. Os seus efeitos sentem-se nas negociações, no debate público, nas lutas e na memória coletiva. Mostra que um país que trabalha também sabe exigir respeito e que os direitos não são dados – são exercidos, reivindicados e, quando necessário, defendidos na rua.

A importância da greve geral é, no fundo, lembrar que a democracia só respira quando o povo fala. E, às vezes, para ser ouvido, precisa de parar.

Dirigente da Associação Política Cidadãos Por Lisboa

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