A cura não é esquecer

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As situações negativas ou mesmo traumáticas que vivemos não se esquecem porque, como me dizia há muitos anos um menino vítima de abuso sexual desde os 4 anos de idade, “não existem borrachas mágicas que apaguem da minha memória aquilo que eu vivi”. E é verdade. Era bom que existissem tais borrachas, mas não existem.

E se as vivências negativas não se esquecem, como é possível viver com elas? Existe cura? Ou as memórias traumáticas são como uma cruz que se carrega para a vida inteira?

Esta é uma preocupação - legítima - não apenas de quem vive na primeira pessoa uma situação adversa, mas também de quem está à sua volta, como os familiares e amigos. Que nem sempre sabem muito bem como reagir, o que dizer e não dizer, o que fazer e não fazer.

As memórias de eventos negativos permanecem, naturalmente, e mesmo quando é difícil falar-se em “cura”, importa salientar que, com o devido suporte e ajuda especializada, estas memórias podem manter-se, mas deixando de causar dor e sofrimento. No fundo, trata-se de aprender a deixar o passado no passado, sem permitir que este se intrometa constantemente no presente, interferindo com o bem-estar a todo e qualquer momento.

Assim, quando dizemos a alguém que viveu ou vive algo negativo “esquece isso” ou “não penses mais nisso”, estamos a seguir um caminho errado. É preciso experienciar essa dor e permitir-se viver as diversas emoções, mesmo aquelas que são mais desagradáveis de sentir. Tentar fechar à chave as memórias traumáticas numa qualquer caixa que se imagina ter dentro da cabeça, para que não voltemos a pensar nelas, é um esforço que se revela infrutífero.

Aquilo que sabemos é que essas mesmas memórias se tornam muitas vezes intrusivas, aparecem quando menos se espera e geram sofrimento. Digamos, então, por exemplo, “podes falar comigo sobre isso”, “estou aqui para te escutar” ou “percebo que te sintas assim”.

Portanto, aceitando que as memórias permanecem, é preciso, sim, aprender a pensar nelas de uma outra forma que seja, por exemplo, menos geradora de culpa ou vergonha.

Elaborar o trauma é também encontrar uma nova narrativa, desconstruindo crenças irracionais que muitas vezes o alimentam. E é, sobretudo, contar com o apoio e suporte das outras pessoas - seja numa perspetiva mais informal, seja pensando numa intervenção psicoterapêutica.

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