O decreto-lei recentemente aprovado pelo Governo, representa um passo decisivo na reorganização e sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS). As novas regras para a contratação de médicos prestadores de serviços — os conhecidos tarefeiros — são uma resposta firme a um problema que se tornou estrutural e que há muito ameaçava a coesão e a justiça dentro do sistema público de saúde.Durante anos, o SNS foi-se apoiando, cada vez mais, em médicos sem vínculo, contratados para suprir carências pontuais, mas que acabaram por se tornar essenciais ao funcionamento das urgências. Hoje, estima-se que cerca de quatro mil médicos trabalhem por tarefa — numa lógica próxima do antigo ‘trabalho à jorna’, marcada pela ausência de vínculo estável —, quase quatro vezes mais do que há uma década. Este modelo, que nasceu como solução de emergência, degenerou numa dependência crónica.O resultado é duplamente nocivo. Por um lado, cria uma pressão financeira insustentável sobre o orçamento público — mais de 200 milhões de euros só em 2024. Por outro, aprofunda desigualdades salariais gritantes dentro do próprio SNS. Médicos que exercem as mesmas funções, nos mesmos serviços e muitas vezes lado a lado, recebem remunerações radicalmente diferentes: um tarefeiro pode ganhar o dobro ou o triplo por hora comparativamente a um médico do quadro, vinculado e com responsabilidades permanentes. Esta distorção desvaloriza quem se mantém no sistema, mina o espírito de equipa e compromete a atratividade das carreiras médicas públicas.A decisão do governo é, por isso, não apenas económica, mas moral e política. O novo regime de incompatibilidades impede que médicos que abandonaram o SNS regressem de imediato como prestadores de serviços, beneficiando de condições, aparentemente, mais vantajosas. Trata-se de um princípio elementar de equidade e coerência: o Estado não pode continuar a recompensar o afastamento e a penalizar a lealdade.Ao mesmo tempo, o diploma não fecha portas. Pelo contrário, abre uma “via verde” para quem quiser regressar ao SNS com vínculo estável, reconhecendo o valor da experiência acumulada e oferecendo uma oportunidade de reintegração ordenada. É uma solução equilibrada, que conjuga disciplina com abertura e garante que o interesse público prevalece sobre o improviso.Sem coartar a liberdade dos médicos — que deve ser sempre respeitada — há, contudo, que lembrar que a sua formação é fruto de um enorme esforço coletivo. São os portugueses, através dos seus impostos, que tornam possível esse percurso e sustentam o SNS, talvez a mais notável conquista da democracia. Defender o serviço público de saúde é, pois, um dever de todos, mas sobretudo de quem dele faz parte. A liberdade profissional não pode estar desligada da responsabilidade social e do compromisso ético para com a comunidade que o tornou possível.É natural que existam receios de uma eventual fuga para o setor privado. Mas a resposta não pode ser desistir de governar. O SNS não pode competir através da inflação dos valores pagos por jornada — isso seria condená-lo à inviabilidade. A resposta tem de continuar a tornar a carreira pública mais atrativa, com melhores condições de trabalho, progressão e reconhecimento. A reforma agora iniciada é um importante passo nessa direção.Ao disciplinar um mercado que crescia sem controlo e ao restabelecer justiça entre profissionais, Ana Paula Martins demonstra uma coragem política rara: a de tomar decisões difíceis em nome da sustentabilidade e da transparência. É assim que se governa um serviço público essencial.O SNS é uma conquista coletiva, e preservá-lo exige escolhas responsáveis. A ministra da Saúde mostrou que é possível fazê-lo com rigor, visão e sentido de Estado.