A coerência da mordaça
Sabemos que a ideia da autonomia científica das universidades e da sua independência face ao poder político, no que diz respeito aos seus programas de ensino, aos seus docentes e à sua investigação, não será totalmente aceite ou sequer compreendida por muitos. Em Portugal, o modelo é razoavelmente recente, com algumas décadas. Em vários países do mundo é desconhecido, desde logo em ditaduras ou em países muito pobres, sem autonomia ou capacidade crítica nas universidades, como noutras instituições, com os programas de disciplinas e as nomeações e despedimentos de professores a serem decididos por despachos de ministros. O poder, quanto mais frágil se sente, mais odeia o saber e a partilha de conhecimento.
Os Estados Unidos, com a atual Administração Trump, como o havia feito o Brasil com o presidente Bolsonaro, assumiram agora uma postura perigosa. Duplamente perigosa, aliás.
Por um lado, perigosa porque impuseram, desde logo pela via da restrição ao financiamento público, limitações e ditames ideológicos ao ensino, à investigação e ao acesso às instituições académicas a coberto de uma ideia de coerência política e legitimidade democrática, abusando desta. Quando a universidade deve ser exatamente o oposto: não uma emulação ou sujeição a um poder conjuntural, mas sempre a sua resistência, crítica, reflexão, rejeição da mera conjuntura e da simples oportunidade, coexistência paralela e competitiva de distintas visões e leituras do mundo.
Por outro lado, igualmente perigosa porque um poder político chantagear instituições pela sua identificação e acolhimento daquilo que é a realidade, necessariamente mais vasta do que uma única perspetiva, é menorizar-se a si próprio. O poder, na sua conjuntura, apouca-se a si próprio ao reduzir qualquer pluralidade, quando esta não é criminosa. E, assim, a seguir, só lhe restará responder e defender-se pela força. A este nível, o que um poder sinta como ameaça só deve ser limitado através do direito e dos tribunais. A grandeza do poder democrático, que é mais do que uma soma de votos, está na sua própria autolimitação e tolerância à diferença e não na sua capacidade, mesmo que a sinta como dever, de impor censuras e saneamentos. A censura académica e a expulsão de professores por delitos de opinião é algo bem conhecido na história das universidades. Não se pensaria era que pudesse regressar em 2025.
Na carta que os funcionários da Administração Trump enviaram à universidade de Harvard no dia 11 de abril passado, uma universidade privada, impõe-se um prazo de 4 meses para a universidade, por exemplo, “reforçar o poder dos professores e funcionários mais dedicados às mudanças apresentadas” nessa carta e “reduzir o poder dos professores e funcionários mais dedicados ao ativismo do que ao ensino”. A carta impõe o fim de quaisquer critérios de género ou raça na contratação de docentes ou admissão de estudantes, bem como a proibição de admissão de estudantes internacionais “hostis aos valores e instituições Americanos”, sejam eles o que forem. Todas as contratações de professores e admissões de estudantes têm de ser reportadas ao Governo federal, aguardando a sua validação. No mesmo sentido, todo o trabalho da universidade em matéria de “diversidade, equidade e inclusão” tem de ser imediatamente cancelado, devendo ainda esta reforçar a atividade da sua própria polícia de modo a evitar quaisquer manifestações ou protestos de estudantes, nomeadamente aqueles a favor da causa palestiniana.
Nada disto é novo. Já o vimos muitas vezes. E começa normalmente desta forma insidiosa, para muitos quase bem-intencionada, formalmente coerente na aparência. Mas não o é. É um passo, brutal, para o fim daquilo que, com a confiança leve das certezas, temos vindo a chamar de liberdade.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa