A clarificação de Washington

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A cimeira dos 75 anos da NATO, que hoje começa em Washington e se prolonga até quinta-feira, surge numa fase especialmente difícil e perigosa para a Aliança Atlântica.

A pouco mais de 100 dias da eleição mais decisiva de todas as que já ocorreram ou ainda vão ocorrer neste ano complexo de 2024, dos EUA vem a tendência cada vez mais clara de que Donald Trump pode estar mesmo de regresso à Casa Branca - a menos que os democratas consigam, nos próximos três meses, ultrapassar o pânico autofágico em que entraram depois da desastrada prestação do seu presidente recandidato, no debate de Atlanta.

Do Reino Unido, as novidades são menos preocupantes, mas também apresentam desafios: Keir Starmer é um trabalhista “tranquilo” - atlantista, pró-americano, pró-ajuda à Ucrânia, longe do esquerdismo de Corbyn -, mas espera-o uma tarefa hercúlea, a de recolocar a “Velha Albion” na rota da prosperidade económica e de uma maior coesão nacional, depois da tragédia política, económica e social que foi o Brexit.

E depois há França: Paris oscilou, nas últimas semanas, entre a iminência da vitória da extrema-direita (que parecia confirmar-se na primeira volta) e a derrota surpreendente na segunda volta (graças à “barreira republicana” que resultou mais do que muitos imaginaram, pelas alianças feitas entre a Frente Popular de Esquerda e o centro de Macron).

O presidente francês surgirá em Washington com um fôlego político renovado: mesmo não tendo vencido (e não será fácil lidar com o triunfo da esquerda unida), a verdade é que em menos de um mês passou de “morto político”, por ter tido menos de metade dos votos da extrema-direita nas Europeias, para uma situação em que, contra todas as apostas, surgiu à frente do Rassemblement National.

O que oferecer já à Ucrânia?

Zelensky há muito que já sabe que ainda não será nesta Cimeira que a Ucrânia receberá a boa notícia de ser convidada para aderir à NATO. Julianne Smith, representante permanente dos Estados Unidos na organização, garante que “serão dados novos passos que permitirão à Ucrânia atravessar, de forma sólida, o caminho que a levará até à NATO”.

Por que é que a Ucrânia não recebe já o “sim”? Simples: porque isso significava, à luz do artigo 5.º do Tratado de Washington, que todo o espaço NATO entraria em guerra direta com a Rússia.

A criação de um representante especial da Ucrânia na NATO surgirá como um dos tais “passos em frente”, mas Zelensky já fez saber que saberá a pouco.

Em recente entrevista ao Philadelphia Inquirer, Zelensky assumiu que “nem Biden, nem Trump estão a considerar verdadeiramente a adesão da Ucrânia à NATO”. “Eles estão a falar abertamente sobre o assunto.  O presidente Biden está a falar sobre isso. E Trump diz que, se não fosse a NATO, a guerra poderia não ter começado. Ora, isso sugere que nenhum vê a Ucrânia na NATO hoje em dia. Infelizmente.”

A estratégia de “ponte para a NATO” corre o risco de se revelar errada e mais não ser do que uma perda de tempo dramática para a Ucrânia. Na guerra, o relógio está a contar - e os ucranianos, que todos os dias morrem por não terem antiaéreas suficientes para travar os bombardeamentos russos, não têm tempo para esperar por tão demorada via para neutralizar o urso russo.

É fundamental que da Cimeira de Washington saia um caminho assertivo e decidido na defesa da Ucrânia. Será também decisivo que a transição de Stoltenberg para Mark Rutte signifique um reforço dos laços transatlânticos - sem eles, estaremos condenados à vulnerabilidade dos intentos imperialistas russos.

Traduzido por miúdos: Rutte (que tomará posse em outubro) terá de estar à altura da História e, caso Trump regresse mesmo, tem como grande desafio para os próximos anos agarrar a coesão euroatlântica, evitando que a futura Administração Republicana em Washington tenha como um dos principais objetivos deslaçar a NATO e, com isso, convidar Putin a alargar a sua ameaça imperialista em território europeu.

Esperam-se sinais fortes sobre a reforma operacional que é preciso fazer na NATO. E será crucial saber que tipo de papel terá um país como a Hungria, claramente pró-russo com o Governo Orbán: será possível que mantenha acesso a segredos militares da Aliança, perante as suspeitas de que os possa transitar para Moscovo?

No lançamento de tão importante Cimeira, a última do seu longo consulado, o secretário-geral Jens Stoltenberg aponta: “A NATO protege a nossa Liberdade, Democracia e modo de vida há mais de 75 anos. A NATO significa coisas diferentes - proteger-nos uns aos outros, apoiar os nossos amigos ucranianos, celebrar as nossas diferenças e superar juntos os nossos desafios. Os resultados das sondagens pré-cimeira mostram um forte apoio à NATO nos 32 Estados-membros e também um apoio no aumento dos gastos com Defesa. 76% dos entrevistados disseram que os gastos com Defesa deveriam ser mantidos ou aumentados.”

Foi isso que apontou o inquérito de opinião pública em todos os 32 países-membros da NATO. O inquérito pediu a mais de 30.000 entrevistados que partilhassem as suas opiniões em diversas áreas, incluindo o apoio à adesão do seu país à NATO, o compromisso com a Defesa coletiva dos Aliados do seu país e o acordo com o aumento dos gastos com Defesa.

Nos próximos dias espera-se que, de Washington, surja clarificação. Ainda não a clarificação eleitoral de novembro entre Trump e Biden. Mas uma clarificação fundamental sobre o futuro da Aliança Atlântica.

Putin recebe Modi em Moscovo

Enquanto isso, Vladimir Putin recebe o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, em Moscovo (ontem e hoje). Depois de estar no Cazaquistão, na Cimeira da Organização de Cooperação de Xangai, com Xi Jinping, Putin recebe o líder de outro país fundamental para que consiga contornar as sanções do Ocidente à Rússia.

É a primeira visita de Modi à Rússia desde a invasão de Putin à Ucrânia. A Rússia é um dos principais fornecedores de petróleo e armas a baixo preço para a Índia, mas o seu isolamento do Ocidente e a crescente amizade com a China afetaram a sua parceria de longa data com Nova Deli.

Nos últimos anos, os Estados Unidos e os seus Aliados Ocidentais têm cultivado laços com a Índia, como força de contrapeso a Pequim e a sua crescente influência na Ásia-Pacífico e, ainda, como pressão para que Nova Deli se distancie da Rússia. Putin e Modi reuniram à margem da Cimeira da Organização de Cooperação de Xangai em Samarcanda, Uzbequistão, a 16 de setembro de 2022.

Mas nem tudo será bom para Putin na receção a Modi: o primeiro-ministro indiano fez saber que pretende discutir com o presidente russo a situação dos cidadãos indianos que alegadamente foram contratados para servir pelo Exército russo na Ucrânia. Nova Deli tudo fará para garantir que os cerca de 40 cidadãos indianos que participaram, de alguma forma, na invasão da Ucrânia pelo lado russo regressem a casa. As autoridades indianas têm apelado à Rússia para rescindirem os contratos de vários dos seus cidadãos que foram recrutados pelo Exército russo para realizar “trabalho de apoio”, mas pelo menos quatro já morreram em combate.

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