A causa das coisas
É complicado perceber-se algo se nos ficamos apenas pela sua descrição e qualificação de acordo com pré-conceitos ideológicos. Pior ainda quando nem se procura compreender o que pode estar na origem de determinadas atitudes ou comportamentos. O que para uns pode ser apenas “estupidez”, “ignorância” ou “imbecilidade”, para outros pode ser uma decisão racional tendo em conta o seu contexto envolvente. Discordo de quem acha que o “voto de protesto” é motivado apenas por reacções emocionais ou fruto de “irracionalidade”.
Como sou antigo, ainda me recordo de um artigo no Semanário, penso que no número inaugural (Novembro de 1983), da autoria de uma eminência parda do regime, que ainda comenta política nos dias de hoje, a par de uma carreira político-empresarial de sucesso, no qual se teorizava algo como a “receita para emagrecer o PCP”. Dizia então o autor que a melhor maneira de esvaziar o eleitorado comunista era desenvolver o país, porque isso retiraria sentido ao “voto de protesto”.
Passados mais de 40 anos, com a excepção de boa parte do Algarve, muitos dos melhores resultados do Chega concentram-se nos mesmos territórios que outrora foram bastiões do PCP. E, apesar de bases ideológicas divergentes, é um voto igualmente de “protesto” e “anti-sistémico” contra o modelo de governação vigente. Compreendo que isto choque algumas sensibilidades e não estou sequer a dizer que existe uma transferência directa do eleitorado, até por questões geracionais. Mas a coincidência é evidente e se formos além das análises lineares que se limitam a apontar as questões da percepção da insegurança e da imigração como motivadoras do voto no Chega, não é difícil verificar até que ponto existe uma coincidência com algumas das zonas mais críticas de funcionamento de serviços públicos como a Saúde ou a Educação.
Faça-se a cartografia das zonas mais afectadas pelo fecho de urgências nos fins de semana, pela falta de médicos de família nos centros de Saúde, pela dificuldade em substituir professores de baixa médica, e notarão uma razoável sobreposição com os concelhos onde o Chega ficou em primeiro ou segundo lugar. Isso só não acontece quando a população apresenta rendimentos acima da média ou maiores níveis de escolaridade. De acordo com o Polígrafo (19 de Maio de 2025) foi em freguesias onde mais de metade da população tem ensino superior que o Chega conseguiu percentagens mais baixas, por vezes abaixo dos 10%. Nos concelhos com maior rendimento per capita da população (Lisboa, Oeiras, Porto), o Chega ficou-se entre os 13,5% e os 14,5% dos votos, embora um baixo rendimento não corresponda automaticamente a uma maior votação.
Querem a “receita para combater o Chega” e o voto de protesto que atrai? Desenvolvam o país, sem crescentes desigualdades, e assegurem serviços públicos de qualidade. Chamar-lhes “fascistas” resolve pouco ou nada.
Professor do Ensino Básico.
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico