A Alemanha em plena Zeitenwende

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A 27 de fevereiro de 2022, três dias depois do início da invasão russa da Ucrânia, o chanceler alemão, Olaf Scholz, falando ao Bundestag (Parlamento germânico), decretou a Zeitenwende (mudança de paradigma) e apresentou uma iniciativa ambiciosa destinada a permitir às Bundeswehr (Forças Armadas alemãs) compensar as suas deficiências de capacidade a curto prazo.

Por essa altura, era leitura dominante em Berlim que a Ucrânia não teria condições para resistir ao invasor russo. A mudança de rota alemã era mais vasta e decorria de um sentimento que passou a prevalecer perante a agressão de Putin no palco ucraniano: o de que toda a arquitetura de segurança europeia tinha ficado obsoleta e só com uma dramática viragem alemã essa ameaça poderia ser travada.

Scholz anunciou um envelope orçamental de 100 mil milhões de euros, para que fosse iniciado um conjunto de programas de modernização das Forças Armadas alemãs, para compensar duas décadas de desinvestimento nos esforços de defesa. Uma outra medida planeava levar rapidamente o orçamento da Bundeswehr acima dos 2% do PIB alemão, compromisso assumido em 2014 na Cimeira da NATO de Cardiff.

A Alemanha foi apanhada de surpresa pela agressão russa na Ucrânia. Por essa altura, as Forças Armadas germânicas só conseguiam, no espaço de um mês, mobilizar um batalhão motorizado, aviões de combate e um escasso número de fragatas e corvetas. A decisão radical de Scholz parecia acertada e urgente. De tal modo que Zeitenwende foi escolhida como palavra do ano na Alemanha.

A guerra de Putin parecia ter ditado o fim da Ostpolitik, tradição da política alemã nas décadas anteriores, sobretudo do SPD, que poderia definir-se como “mudança pela reaproximação”, numa base de contenção ou apaziguamento.

Viu-se no que deu essa opção por “compreender a Rússia”: o Nord Stream 1 tornou-se realidade; Merkel queria avançar para o Nord Stream 2, que foi construído, mas não chegou, à última, a entrar em ação. A dependência alemã da energia russa teve de recuar em modo de urgência. Moscovo deixou de ser ameaça - a partir de 24 de fevereiro de 2022 passou mesmo a ser um agressor efetivo.

A viragem alemã está a fazer-se - mas demora e é complicada

Quase dois anos depois, a transformação está longe de ser um processo bem-sucedido. Há vários obstáculos no caminho desta “mudança radical” tão necessária.

Desde logo uma barreira orçamental. Apesar do compromisso alemão, celebrado em 2014 no âmbito da NATO, de atingir ou exceder os 2% do PIB em gastos de Defesa, a verdade é que tal meta foi excluída dos orçamentos anuais de 2022 e 2023. As Bundeswehr ficaram, assim, privadas de 20 mil milhões de euros de créditos que deveriam ter sido atribuídos retroativamente. A nova Lei Orçamental alemã prevê que entre 2024 e 2027 seja mantido a um nível de 2% do PIB para a Defesa.

E há ainda o travão da dívida. A ortodoxia orçamental, exigência muito presente num dos vértices do triângulo da coligação que sustenta o Governo de Berlim (o FDP, liberais), prevê que não se altere a regra constitucional que impede o Estado de aceder a empréstimos superiores a 0,35% do seu PIB anual, o que dificulta a aquisição de novos equipamentos militares que seriam decisivos para a mudança desejada.

Ora, essa é uma das grandes diferenças entre o que se passa na Rússia, em que a vontade do presidente não esbarra em pormenores político-orçamentais.

Já muito à frente do Reino Unido

Mesmo assim, a Alemanha conseguiu tornar-se, a grande distância, no segundo maior contribuinte militar da Ucrânia, muito atrás dos EUA, é certo, mas bem à frente de Reino Unido e países nórdicos como a Noruega, a Dinamarca ou a Suécia.

Entre ajuda humanitária, financeira e militar, a Alemanha já avançou com mais de 23 mil milhões de euros à Ucrânia. E não vai parar: para 2024, Berlim duplicará para oito mil milhões de euros a ajuda militar inicialmente prevista para a Ucrânia para este ano. Quase o triplo dos 3 mil milhões que serão dados pelo Reino Unido, o quádruplo dos 2 mil milhões dos Países Baixos, mais do dobro que França e Itália darão juntas.

Enquanto Olaf Scholz for chanceler alemão, não restam dúvidas de que a Alemanha pretende assumir a liderança europeia no apoio à Ucrânia: “Os envios de armas para a Ucrânia planeados, até agora, pela maioria dos Estados-membros da UE são, em qualquer circunstância, demasiado pequenos”, alertou, há dias, o líder do Governo de Berlim.

Outra prova do compromisso germânico na travagem à agressão russa foi a colocação de uma brigada do Exército alemão fora de seu território pela primeira vez desde a II Guerra Mundial: 5000 soldados enviados para a Lituânia, em posição estratégia de “tampão” para uma possível investida russa pelo exclave de Kaliningrado.

E os Taurus?

Enquanto prosseguem os impasses políticos em Washington (para aprovação de 64 mil milhões de dólares de apoio militar norte-americano à Ucrânia em 2024) e em Bruxelas (para que avancem os 50 mil milhões de euros em apoio macrofinanceiro a quatro anos, fundamental na manutenção da liquidez do Estado ucraniano), a Alemanha será o pilar mais relevante da lista de alternativas que Zelensky já estará a preparar para continuar a resistir ao invasor russo.

É certo que Berlim ainda não deu a Kiev um instrumento poderoso para a ação ucraniana nos ataques em profundidade à Crimeia - os mísseis de longo alcance Taurus. A hesitação não deixa de gerar alguma perplexidade: os EUA, também eles depois de vários meses de adiamentos, já se decidiram em fornecer os seus mísseis táticos ATACMS e faria sentido que, logo a seguir, a Alemanha avançasse com a cedência dos Taurus (tinha sido essa a lógica usada na aprovação dos carros de combate Leopard, após os EUA terem anunciado o “Sim” aos M1 Abrams). A Ucrânia já opera a dupla de mísseis de cruzeiro Storm Shadow/SCALP (anglo-francesa), mas espera obter em breve o modelo alemão Taurus KEPD 350, com alcance de 500 quilómetros, 1360 quilos de peso, ogiva de 481 quilos e velocidade de 1000km/h.

Mesmo assim, o fornecimento militar alemão a Kiev tem sido apreciável: sistemas de mísseis HIMARS, veículos de combate de infantaria Marder, carros de combate Leopard-1, sistemas de defesa aérea IRIS-T-SLM, tanques de remoção de minas WISENT 1, veículos de transporte e ambulâncias, milhares de cartuchos de 125 milímetros, milhões de cartuchos de munição para armas de fogo e material para eliminação de munições explosivas, sistemas de vigilância e deteção.

O mais recente pacote de ajudas inclui mísseis antiaéreos SKYNEX com munição e mísseis. A ajuda inclui também dois radares TRML-4D, 30 sistemas de deteção de drones e munições de vários calibres.

A tudo isto junta-se a aquisição de sistemas antibalísticos Arrow 3, de fabrico israelita, para apoiar o Sky Shield (sistema de defesa europeu).

A Zeitenwende foi decisão corajosa e de rutura. Está em marcha. Mas enfrenta muito mais desafios do que a urgência do reforço da ajuda à Ucrânia exigiria.


Especialista em Política Internacional

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