“A lei que está em vigor tem algum desequilíbrio a favor dos trabalhadores.”Imaginemos que estas palavras, pronunciadas por Maria do Rosário Palma Ramalho, a ministra do Trabalho, em entrevista à RTP a 26 de novembro, tinham sido ditas por Luís Montenegro nas campanhas das legislativas de 2024 ou de 2025, anunciando assim que tencionava rever o Código do Trabalho para acabar com tal “desequilíbrio”.Imaginemos que Luís Montenegro tinha explicado em que é que acreditava existir esse desequilíbrio no Código do Trabalho (o qual, recorde-se, tem a função de acautelar os direitos dos trabalhadores) e como iria “reequilibrá-lo”. Que tinha anunciado, por exemplo, querer acabar com a proibição de que as empresas possam recorrer ao outsourcing logo a seguir a efetuarem um despedimento coletivo. Por outras palavras: queria permitir que se possam despedir, por atacado, trabalhadores mais caros e substitui-los, através de subcontratação, por mais baratos. Que tinha o desejo de “simplificar” os processos disciplinares com vista ao despedimento individual (acabando com o processo e deixando só o despedimento) e revogar a obrigação, caso o trabalhador recorresse ao Tribunal de Trabalho e se provasse ter sido despedido sem justa causa, de reintegração do trabalhador na empresa que o despediu ilegalmente. Ou seja, que Luís Montenegro teria admitido, como opina o insuspeito Bagão Félix (centrista que foi ministro da tutela entre 2022 e 2004, no governo de Durão Barroso, e que aprovou o primeiro Código do Trabalho) em declarações ao Expresso esta sexta-feira, ser seu objetivo liberalizar os despedimentos ilegais.Imaginemos que, enquanto candidato a primeiro-ministro, Montenegro teria assumido ser seu desejo que as empresas passassem a poder baixar o salário dos trabalhadores atribuindo-lhes um posto diverso do que detinham, dando à Autoridade para as Condições de Trabalho 30 dias para se pronunciar, findo os quais se assumiria o deferimento tácito.E ainda que queria que as horas extraordinárias pudessem passar a ser pagas em dias de folga e não em salário e que os contratos a prazo pudessem ser estendidos dos atuais seis meses iniciais para um ano, com as renovações passando de até dois anos para três anos.Estão a ver a ideia? E que dizia que tudo isto era necessário para “aumentar a produtividade” e para “modernizar” o mercado de trabalho, “adaptando-o” à “era digital” e “ao século XXI”, e que não conseguia perceber por que motivo os representantes dos trabalhadores — os sindicatos — protestavam e prometiam luta.Estão a imaginar o que aconteceria? Se não estão, podem ter a certeza de que Luís Montenegro imaginou. Razão pela qual esta “reforma” que agora exalta como absolutamente fundamental, que a sua ministra do Trabalho assevera ser tão dela como do primeiro-ministro, e que o ministro da Economia proclamava esta segunda-feira, na SIC-N, não poder parar, nunca foi, nem sequer ao de leve, por si abordada ou desvendada em discursos de campanha, em debates ou nos programas eleitorais. No programa da AD para as legislativas de 2025, quanto a alteração do Código do Trabalho, lê-se apenas esta platitude: “Simplificação do código do trabalho através da racionalização do articulado, focada em reduzir custos de contexto, assim garantindo a maior implementação e compreensão das regras pelas partes”. “Racionalização do articulado”, ahah. Tudo no programa era assim em suave, en passant: “Modernizar as regras para confrontar a segmentação do mercado e ajustar às transformações no mundo do trabalho”; “potenciar as relações laborais estáveis, o investimento das partes na relação laboral, e a efetiva integração dos trabalhadores”. Tudo sempre, note-se, de acordo com a estrita “vontade do trabalhador”: “Enquadramento flexível de transição entre durações do período normal de trabalho semanal, mesmo que temporária, com possível ajuste percentual da remuneração, permitindo um contacto mais ligeiro com o mercado trabalho quando tal é desejado e por iniciativa exclusiva do trabalhador”; “reforço da possibilidade de transição, mesmo que temporária, entre regimes de horário de trabalho e possibilidade de trabalho remoto por acordo entre as partes”.Só um nadinha diferente da proposta agora apresentada e à qual até Bagão Félix qualifica de “à bruta”. A mesma que que o social-democrata Silva Peneda, que foi ministro do Trabalho de Cavaco Silva, reputa, na citada peça do Expresso, de “desequilibrada”e “inoportuna”, nada vendo nela que “esteja relacionado com o aumento da produtividade nem com a competitividade” nem, tão-pouco, abordando “as necessidades dos tempos modernos: a digitalização, a inteligência artificial, a computação”. Aliás, para outro especialista da área, António Monteiro Fernandes, professor universitário que é visto como “figura incontornável do Direito do Trabalho” e foi secretário de Estado da tutela no primeiro Governo Guterres, igualmente em declarações ao Expresso,“estas alterações são do século XX, não têm nada para oferecer ao século XXI”.Acrescendo, garantem ao mesmo semanário os juristas Guilherme Dray e Ana Teresa Ribeiro, que no que respeita aos trabalhadores das plataformas digitais, as regras que o governo quer fazer vingar tornarão “praticamente impossível a um tribunal reconhecer que um estafeta ou condutor de Uber é um trabalhador por conta de outrém e tem direito ao posto de trabalho”. Não é, como se vê, necessário dar a palavra a sindicalistas, ou sequer a pessoas de esquerda, para se concluir que o objetivo das alterações ao Código de Trabalho é só um: retirar direitos e garantias aos trabalhadores, desequilibrando a lei (ainda mais) para o lado dos patrões. E que, tendo escondido essa agenda ao apresentar-se a eleições, a coligação presidida por Montenegro esperava, pela calada, o momento certo. Ou maioria absoluta ou a coisa mais parecida: uma possível maioria com Iniciativa Liberal e Chega e condições para fazer passar aquilo que nunca, sabe bem, conseguiria convencer os eleitores a aprovar. É por esse motivo que o melhor argumento a favor da urgência e legitimidade da greve-geral desta quinta-feira, a greve-geral que ele e o seu governo tanto se têm esforçado por apresentar como sem sentido, é mesmo de Luís Montenegro e do seu PSD: se não soubessem que só podiam fazer esta reforma enganando os trabalhadores portugueses, não a tinham tão cuidadosamente ocultado. .Tudo o que está em causa nas alterações à lei laboral, que levaram à marcação da greve geral para quinta-feira