No domingo passado, o Governo português submeteu formalmente a sua candidatura ao programa SAFE, o novo instrumento europeu de empréstimos para a Defesa, abrindo a porta a 5,8 mil milhões de euros em investimento nas Forças Armadas. É um número verdadeiramente impressionante. Principalmente quando o comparamos com a Lei de Programação Militar para 12 anos, até 2034, cuja verba é de 5,5 mil milhões de euros.Trata-se, como sublinhou o ministro Nuno Melo, do “maior investimento de uma só vez” nas Forças Armadas portuguesas.Segundo a Comissão Europeia, o SAFE disponibiliza empréstimos de longo prazo, com juros competitivos e 10 anos de carência, podendo chegar a prazos de até 45 anos e incluindo pré-financiamento e isenção de IVA nos contratos apoiados.É, em teoria, dinheiro “barato” para modernizar rapidamente capacidades em terra, mar, ar e espaço – de blindados a navios, de drones a satélites.Mas por trás da manchete dos 5,8 mil milhões há perguntas que ainda sem resposta clara: como serão feitas as aquisições? Quem controla estes contratos? Que contrapartidas concretas terá a indústria nacional? E em que conceito estratégico nacional se baseia este esforço?Do ponto de vista financeiro, o pacote é desenhado para ser atraente. É compreensível que governos com finanças públicas apertadas vejam no SAFE uma oportunidade rara. Mas a combinação de dinheiro fácil, pressa e complexidade técnica é sempre delicada. Sabemos que a concretização deste plano ainda depende da resposta de Bruxelas sobre o modelo apresentado por Portugal. Mas uma vez que vamos ser nós, os contribuintes - e provavelmente os nossos filhos - a pagar esta fatura, podia haver mais transparência. Desconhece-se ainda um quadro público detalhado com a lista de equipamentos a adquirir, custos individualizados, calendário de entregas e encargos de reembolso ao longo das próximas décadas. É como se fosse um cheque em branco, que só vamos perceber em pormenor quando a conta tiver de ser paga.Há outra peça sensível: o modo de contratação. O regulamento do SAFE prevê “derrogações dirigidas” à Diretiva 2009/81/CE, justamente para simplificar e acelerar os processos de aquisição de defesa.Na prática, é como dizer que, para contratos financiados pelo SAFE, se presume a existência de uma situação de crise, o que permite aos Estados recorrer de forma generalizada ao “procedimento por negociação sem publicação prévia” – o equivalente europeu a um ajuste direto por urgência.Não é uma ilegalidade, está previsto na própria diretiva. Mas é um atalho de exceção, pensado para casos extraordinários, que agora se tornará regra num pacote de 150 mil milhões de euros à escala europeia. Quanto a Portugal, com o nosso histórico de polémicas em compras públicas, era importante, se não essencial, saber que filtros adicionais serão criados para prevenir corrupção, favoritismos e garantias de que o interesse nacional é critério preponderante.Seria injusto, contudo, ignorar o esforço que o atual ministro da Defesa tem procurado fazer. Em julho, Nuno Melo criou um grupo de trabalho SAFE, com a missão de preparar a participação portuguesa no programa, identificar necessidades prioritárias nos três ramos e articular com a indústria nacional, com o objetivo declarado de garantir benefícios concretos para a Base Tecnológica e Industrial de Defesa nacional.Este movimento merece benefício de dúvida em relação às preocupações referidas. É positivo que o ministro tenha colocado à volta da mesa chefias militares e indústria, assumindo a ambição de Portugal liderar alguns projetos de aquisição conjunta e alinhar as escolhas com metas da NATO em matéria de capacidades. Se o grupo de trabalho funcionou com critérios claros – mais uma vez, a dúvida, pois nada foi público - transparência e escrutínio, pode mitigar parte dos riscos associados ao volume e à rapidez dos investimentos.O discurso oficial repete que o SAFE é uma “oportunidade histórica” para integrar empresas portuguesas em cadeias de valor europeias, sobretudo em munições, sistemas terrestres, capacidades navais, ciberdefesa e domínios estratégicos como o espaço.Mas precisamos mais do que retórica. A experiência de outros programas europeus mostra que, sem cláusulas vinculativas de contrapartidas industriais, transferência de tecnologia e participação efetiva de PME nacionais, a maior fatia dos contratos tende a ficar nas mãos dos grandes players tradicionais. SAFE é, por natureza, um instrumento de empréstimos para aquisição de produtos já existentes, não um fundo de desenvolvimento de novas capacidades em Portugal.Se o Estado português não for exigente na negociação – garantindo, por exemplo, que cada grande contrato assegura desenvolvimento em território nacional – o risco é termos mais dívida, mais equipamento importado e pouca alteração estrutural na base industrial.Há ainda um ponto estrutural de que só se fala entre especialistas de Defesa, mas que tem impacto para todos nós. É que Portugal está a tomar decisões de longo prazo em Defesa com base num Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN) de 2013. É isso mesmo. Não é gralha.O CEDN define as prioridades do Estado em matéria de defesa, daí decorrem o Conceito Estratégico Militar, o Sistema de Forças Nacional e, por fim, a Lei de Programação Militar.Na prática, estamos a decidir 5,8 mil milhões em capacidades para 2030 com um CEDN desenhado antes da anexação da Crimeia, antes de 2014, antes da invasão em larga escala da Ucrânia e antes da nova vaga de ameaças híbridas e cibernéticas. O próprio debate político no Parlamento já reconheceu a necessidade de rever o CEDN. Essa revisão continua, porém, por fazer.Se o SAFE é, como se diz, uma oportunidade histórica, então deve ser tratado com a seriedade e transparência de uma decisão histórica. A confiança dos cidadãos não se compra com slogans de “maior investimento de sempre”. Constrói-se com informação, debate e escrutínio.