4 minutos de Inteligência Artificial

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Vivemos tempos de triunfo de todos os maniqueísmos. Dir-se-ia que não há nenhum tema que entre na chamada discussão pública sem que os “mensageiros” das ideias dominantes desenhem uma linha, supostamente clara e indiscutível, a separar as avaliações “justas” e “injustas” desse mesmo tema. A começar pelos resultados do futebol, como bem sabemos.

Algo do mesmo género está a acontecer com a súbita atualidade da Inteligência Artificial (IA), todos os dias citada como um passo mais para o apocalipse dos humanos. Entenda-se: podemos ser suficientemente prudentes (inteligentes, é o caso) para não minimizarmos, muito menos negarmos, os fenómenos perversos e inquietantes que a IA pode favorecer - para nos ficarmos por um sintoma recente, porventura dos mais benignos, lembremos que a possível manipulação de imagens de arquivo de atores foi uma questão central nos meses de greve que pontuaram a vida da comunidade de Hollywood. Resta saber se a consciência de tais perigos ganha alguma coisa com a redução da história da IA a uma agitação simplista, apenas capaz de alimentar as formas correntes de histeria mediática.

Blaise Pascal inventou uma calculadora mecânica tradicionalmente reconhecida como a primeira máquina de calcular digital - foi em 1642. Será que, quando percorremos as múltiplas peripécias dos séculos que se seguiram - incluindo, por exemplo, em 2004, o passeio no planeta Marte da zona espacial Spirit, concebida pela NASA -, faz sentido virarmo-nos para o parceiro do lado e exigirmos que ele nos diga se está “pró” ou “contra” a IA?

A vastidão, complexidade e, não tenhamos dúvidas, dificuldade dos problemas envolvidos aconselha a que mostremos alguma disponibilidade para reconhecermos que nenhuma generalização moralista nos ajudará a lidar com a IA. Claro que nos identificamos com as angústias dos astronautas filmados por Stanley Kubrick em 2001: Odisseia no Espaço (1968), mas talvez seja útil reconhecer que o nosso computador caseiro não é o genial HAL 9000 e, salvo melhor opinião, não estamos a caminho de Júpiter.

Daí a modéstia da proposta destas linhas. A saber: descobrir as imagens criadas para uma nova canção da banda nova-iorquina San Fermin, Weird Environment, incluída no seu novo e magnífico álbum, Arms, lançado há cerca de um mês.

Weird Environment chegou-nos, de facto, através de um teledisco (disponível no YouTube) que é um pequeno prodígio de aplicação de recursos da IA.

Vale a pena lembrar que as singularidades dos San Fermin começam no seu nome, escolhido a partir das festas anuais com essa designação, na cidade espanhola de Pamplona (ainda que a sua música e o seu ideário sejam totalmente estranhos a tal “inspiração”).

O líder da banda, Ellis Ludwig-Leone (n. 1989), é um apaixonado por um rock de inusitada elegância (há quem lhe chame chamber pop); em qualquer caso, teve uma formação eminentemente clássica, a certa altura completada pelo seu trabalho com Nico Muhly, notável criador de um certo “classicismo moderno” com expressão importante também na área do cinema - na filmografia de Muhly encontramos, por exemplo, a música de O Leitor (2008), o filme de Stephen Daldry que valeu um Óscar de Melhor Atriz a Kate Winslet.

Ellis Ludwig-Leone realizou o teledisco com a colaboração de Matthew Slotkin, tendo como motivação a “perturbação em torno do uso da IA no mundo da arte e da música.” Daí a decisão de encenar uma canção marcada por um certo “sentimento de desconforto”, típico dos nossos dias, recorrendo a “uma ferramenta que também [lhe] provocava desconforto.”

Que aconteceu, então? Começaram por escolher uma fotografia de imprensa do próprio Ellis (a primeira de todas, quando tinha 21 anos) e transformaram-na, como ele diz, em diferentes “Ellises” - ao todo 37, para sermos exatos. Combinando essas imagens com diversos cenários motivados pela letra da canção, foram tratando as personagens inventadas à maneira de tradicionais cartoons, fazendo-as desaparecer através da explosão das respetivas cabeças…

Nada de filme de terror, entenda-se também. Nos seus exuberantes 4 minutos, Weird Environment é uma pequena maravilha de um modo híbrido de expressão, com o seu quê de romantismo, sintomático da pluralidade técnica e estética da paisagem audiovisual que habitamos. Será uma proposta artificial? Sem dúvida. E também inteligente. E ainda genuinamente humana.

Ellis Ludwig-Leone na sua aventura técnica e estética.

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