2 - A primeira e a última revolução portuguesa
Em geral, as insurreições militares, só quando apoiadas por forte adesão popular, conseguem transformar-se em revolução. Caso não exista essa ligação umbilical, esses e outros movimentos similares podem não passar de simples pronunciamentos, de insubordinação, de rebelião, de golpes palacianos ou de golpes de Estado.
No caso português, tanto a primeira revolução, principiada em 6 de Dezembro de 1383, como a última, de 25 de Abril de 1974, que não se iniciaram como revolução mas, gradualmente, foram-se transformando em revolução, tiveram uma forte adesão popular, embora na primeira a população tivesse sido mobilizada, de forma capciosa por Álvaro Pais, e na segunda, apesar de ter sido pedido à população, pelo Movimento das Forças Armadas, para não sair das suas casas, ela veio para a rua e apoiou os militares revoltosos de forma espontânea e calorosa.
Estando as duas revoluções em andamento, nas ruas de Lisboa, com inequívoca adesão popular, vejamos se houve parecenças entre elas.
Se, no dia seguinte ao assassinato do odiado conde Andeiro, tido como amante da rainha D. Leonor, Antão Vasques, juiz do crime da cidade de Lisboa, quando recebeu as instruções de D. João, Mestre de Avis, em vez de consultar a rainha, como era sua obrigação, excedeu no cumprimento das directrizes do Mestre e mandou apregoar em seu nome, sob determinada pena, que era proibido ir à judiaria e fazer mal aos judeus, quando devia tê-lo feito em nome da rainha D. Leonor, sabendo ser ela a legítima detentora do poder, também o comandante da companhia da 1.ª Divisão da Polícia, interpelado por Salgueiro Maia a responder se estava por ele ou contra ele, preferiu acatar as ordens desse capitão, juntando-se às forças revolucionárias, quando devia combatê-lo em cumprimento das ordens recebidas do então poder em exercício, ou seja, do Estado Novo.
Se a rainha D. Leonor, apupada e ofendida pelos populares, sendo incapaz de controlar a situação político-militar, sentindo-se insegura em Lisboa, teve que pedir o salvo-conduto ao Mestre de Avis para poder fugir para Alenquer, o primeiro-ministro Marcello Caetano, refugiado no Quartel do Carmo, também vaiado pela população, constatando ter perdido o poder, depois de o entregar ao general António de Spínola, teve um fim pior do que o da rainha, porque foi detido e transportado por Salgueiro Maia para o Posto do Comando, no quartel da Pontinha, e dali enviado para a Ilha da Madeira.
Assim como a eleição, no Mosteiro de São Domingos, feita pelos mesteirais, povoadores e moradores de Lisboa, de D. João, Mestre de Avis, como Regedor e Defensor dos Reinos de Portugal e do Algarve, e sua confirmação, no dia seguinte, na Câmara do Concelho da capital, pelos maiorais, aconteceu sob forte coacção popular e em troca de promessas e da concessão de cargos e privilégios, assim também a Junta da Salvação Nacional, onde estavam representados os três ramos das Forças Armadas, cuja criação havia sido prevista no programa do citado Movimento, tendo iniciado as suas funções no dia 26 de Abril de 1974, também no dia seguinte, perante a força e dimensão das reivindicações populares, uma das primeiras medidas que tomou foi instituir e consagrar, por decreto, a data do Primeiro de Maio, o Dia Mundial do Trabalhador, como feriado nacional obrigatório, dando assim o mote para as posteriores mudanças que estavam em vias de ser tomadas.
Na Primeira Revolução Portuguesa, a rainha D. Leonor criou, intencionalmente, um vazio de poder em Lisboa, com a fuga estratégica, sua e do seu governo para Alenquer.
Em sequência dessa manobra táctica, quando foi sabido pelo povo que, na reunião dos principais membros de oposição da capital, após prolongadas discussões, havia sido enviado uma delegação para Alenquer, composta pelo cidadão Álvaro Pais e pelo nobre Álvaro Gonçalves Camelo, levando uma proposta de compromisso para tentar a conciliação com a rainha D. Leonor, sendo isso feito com conhecimento e concordância do próprio D. João, Mestre de Avis, a população lisboeta, - indignada e revoltada com essa resolução, receando pela sua sorte, pois pressentia que seria vingada pela rainha, por a ter ofendido, chamando-a de aleivosa -, juntando-se em magotes, depois de se oferecer para ajudar o Mestre, pressionou-o e forçou-o a romper com o acordo estabelecido ou a estabelecer em Alenquer, a não fugir para a Inglaterra e a permanecer em Lisboa para defender a cidade e a independência nacional.
Assim também no Primeiro de Maio de 1974, com a presença dos regressados do exílio, Álvaro Cunhal, Secretário-geral do Partido Comunista Português, e de Mário Soares, Secretário-geral do Partido Socialista, representando as duas principais forças políticas e sociais que se opuseram, de uma forma organizada ao Estado Novo, acompanhados de cerca de um milhão de pessoas, saudando o fim da ditadura e desfrutando o início da liberdade, caminharam da Alameda até ao recém-baptizado Estádio Primeiro de Maio, gritando frases como “o povo unido jamais será vencido”, e garantindo que lutariam para que o processo revolucionário prosseguisse, sem paragens nem retrocessos, e pugnando pela instituição da democracia, conquista das liberdades e de direitos fundamentais, tanto civis como políticos e sociais, assim como o direito à greve e a sindicatos livres.
Se na Primeira Revolução Portuguesa, D. João, Mestre de Avis, teve de submeter-se à exigência dos mesteirais, povoadores e moradores de Lisboa, que proibiram Álvaro Gonçalves, vedor da Fazenda do falecido rei D. Fernando, e outros criados do conselho da rainha D. Leonor, de fazerem parte do seu conselho e de terem ofícios na cidade, embora a vontade do Mestre fosse de perdoar-lhes, assim também quando se põe a hipótese de convidar Veiga Simão, ministro de Educação Nacional do Governo de Marcello Caetano, para fazer parte do Governo Provisório, apesar de haver tido um notável desempenho nas suas funções, tanto em Moçambique como no continente, e de ter sido visto, pelos seus pares, como o “comunista do regime”, houve assembleias académicas que repudiaram essa possibilidade e cerca de seis mil professores, reunidos para lançar as bases do respectivo sindicato, pronunciaram-se também contra a hipótese dessa nomeação.
Se uma das primeiras providências tomadas por D. João, Mestre de Avis, após ter sido confirmado na reunião Plenária do Concelho da cidade de Lisboa, como Regedor e Defensor dos Reinos de Portugal e do Algarve, foi a de criar um Governo sem nobres, com um único eclesiástico e sem nenhuma presença dos representantes do governo anterior, - tendo como chanceler-mor o Doutor João das Regras, que no passado, em conselho, dissera ao rei D. Fernando que era contra a sua opção de obediência ao antipapa de Avinhão, Clemente VII -, assim também do primeiro Governo Provisório, saído da última Revolução, que tomou posse em 16 de Maio de 1974, dirigido pelo Primeiro-ministro Adelino de Palma Carlos, só fizeram parte os representantes das principais forças políticas da oposição, entre outros, Francisco Sá Carneiro, como Ministro-adjunto do Primeiro-ministro, Álvaro Cunhal, Ministro sem pasta, e Mário Soares, Ministro dos Negócios Estrangeiros.
A rainha D. Leonor, tendo partido de Alenquer para Santarém, sentindo-se incapaz de dominar a insurreição lisboeta, encabeçada por D. João, Mestre de Avis, depois de muito hesitar, não só convida o seu genro a entrar em Portugal, como também, esquecendo todos os impedimentos legais existentes, abdica a favor do rei D. João I de Castela e de sua mulher, rainha D. Beatriz, no dia 13 de Janeiro de 1384, do governo e do regimento.
Todavia, quando vê recusado o seu pedido a favor de D. Juda, que fora tesoureiro do rei D. Fernando, de ocupar o cargo de arabiado-mor de Castela, que estava vago, e após ter tido outras altercações com o seu genro, quando se sente prisioneira por estar a ser guardada por castelhanos e não por guardas portugueses, e por ficar cada vez mais desiludida com o comportamento dos castelhanos e do rei, não só aconselha a alguns dos que a tinham acompanhado, desde Lisboa, a tomarem o partido do Mestre de Avis, como também, em desespero de causa, abraça a conjura dos que, em Coimbra, pretendiam assassinar aquele rei de Castela e casá-la com o conde D. Pedro, primo desse rei.
O general António de Spínola, que estava em consonância com os revolucionários, com autorização do Comando do Movimento das Forças Armadas, recebeu a rendição do regime, apresentada pelo Primeiro-ministro Marcello Caetano, chefiou a Junta de Salvação Nacional e tomou posse do cargo de Presidente da República, no dia 15 de Maio de 1974.
Contudo, a partir da reunião na Manutenção Militar, datada de 13 de Junho de 1974, havendo ficado claro que o seu projecto de descolonização era diferente do do Movimento das Forças Armadas, do qual foi tendo oposição, gradualmente, vai perder a sua influência dentro das Forças Armadas, nos Governos Provisórios, na Junta de Salvação Nacional e no Conselho do Estado.
Sendo derrotadas, por unanimidade, na reunião do Conselho do Estado, de 8 de Julho de 1974, as propostas do Primeiro-ministro Palma Carlos, de reforço dos poderes presidenciais e de adiamento das eleições, Palma Carlos pede a sua demissão no dia seguinte.
Perante esse desfecho, António de Spínola, Presidente da República Portuguesa, sentindo que estava a perder a sua capacidade de influenciar, constatando que não tinha sido autorizada uma manifestação de apoio à sua política, chamada de “maioria silenciosa”, - inviabilizada por civis de esquerda e por elementos do Movimento das Forças Armadas -, e por ter sido impedido de declarar o estado de emergência, como pretendia, achou por bem demitir-se em 29 de Setembro de 1974.
Em 11 de Março, a facção, liderada por si, tenta promover um golpe de Estado mas, por ter fracassado, é obrigado a fugir de avião para Espanha.
Curiosamente, os três governantes derrotados das duas revoluções, seguiram o caminho do exílio: a rainha D. Leonor para Castela, depois da sua fuga de Lisboa e, depois de, em desespero de causa, liderar a tentativa falhada de assassinar o rei D. João I de Castela; o Primeiro-ministro Marcello Caetano para a Ilha de Madeira e dali para o Rio de Janeiro, Brasil, depois da sua rendição e entrega do poder ao general António Spínola, na tarde do início da revolução dos cravos; e António Spínola, Presidente da República, para Espanha e depois para o Brasil, por ter falhado o golpe de Estado de 11 de Março.
A partir do rompimento definitivo de D. João, Mestre de Avis, com a rainha D. Leonor, houve fuga dos seus correligionários de Lisboa para outros locais partidários de Castela, sendo as suas casas ocupadas, os seus cargos e bens doados pelo Mestre aos seus apoiantes, de forma mais acentuada, após ter expirado o prazo limite estabelecido aos portugueses, que acompanhavam o rei de Castela, em Santarém, para regressar à cidade de Lisboa, sob pena de confiscação de seus bens.
Assim também, após o fracasso da tentativa do golpe de Estado de 11 de Março de 1975, o regime radicaliza-se à esquerda: a banca e os seguros são nacionalizados; inicia-se o processo de ocupação, saneamento e nacionalização das empresas; da ocupação de casas vazias dos ausentes; das terras que estavam por cultivar; e avança-se para a reforma agrária.
Se após 11 de Março, durante o chamado Processo Revolucionário em Curso, Otelo Saraiva de Carvalho é acusado de utilizar o poder, de forma discricionária, para prender adversários políticos, através de emissão de mandatos de captura em branco, também um dos pedidos feitos e aceite pelo recém-eleito rei D. João I, nas Cortes de Coimbra de 1385, foi o de prometer não passar mais cartas em branco: “E porque das cartas brancas se seguem e podem seguir os malles suso ditos, pedem-vos os povoos que nom dedes a nenhũu, ca muytos malles se fizerom em estes regnos per ellas” (Valentino Viegas, Lisboa, A Força da Revolução (1383-1385), Livros Horizonte, Lisboa, 1985, p. 246).
Com o triunfo da Primeira Revolução Portuguesa, após o levantamento do cerco de Lisboa, da eleição de D. João, Mestre de Avis, como rei de Portugal, da vitória da Batalha de Aljubarrota e da celebração das pazes com Castela, em 1411, os governantes portugueses tomaram consciência de que, face ao poderio do vizinho, se quisessem alargar o seu território só o poderiam fazer pela fronteira marítima, daí a opção pela conquista de Ceuta, em 1415, da gesta dos descobrimentos e do início da expansão territorial no continente africano, asiático e americano.
Com o fim do Processo Revolucionário em Curso, em consequência da movimentação militar vitoriosa de uma parte das forças armadas portuguesas, em 25 de Novembro de 1975, estabiliza-se o processo da democracia representativa em Portugal; realizam-se as eleições livres e democráticas em 25 de Abril de 1976; é eleita a Assembleia Constituinte que rediz a Constituição da República Portuguesa; António Ramalho Eanes é eleito Presidente da República, por sufrágio directo e universal, em 27 de Junho de 1976, tendo tomado posse no dia 14 do mês seguinte.
Sendo também encerrado o processo da descolonização, Portugal regressou, praticamente, às suas fronteiras de origem e encontrou na vizinha Espanha e na Europa, com a assinatura do tratado de adesão à Comunidade Económica Europeia, o seu caminho para o futuro, sem esquecer de manter boas relações com as suas antigas colónias e de concorrer para fomentar a paz no mundo.
No passado secular, houve quem tivesse sido sempre contra a primeira revolução portuguesa, mesmo depois da eleição de D. João, Mestre de Avis, como rei de Portugal, nas Cortes de Coimbra de 1385, e da retumbante vitória na Batalha de Aljubarrota, assim também, no presente, ainda continua a haver, quem tenha aversão e deteste ouvir falar da revolução de 25 de Abril de 1974 mas, quer queiramos, quer não, os factos históricos são irreversíveis, podem ser interpretados de forma diferente, mas continuam a ser estudados e a fazer o seu caminho, e nós temos de respeitar as opiniões e os sentimentos tanto dos antepassados como dos contemporâneos, porque os humanos são o que são, vivem felizes com as suas virtudes e defeitos, firmemente presos às suas convicções que, para eles são as únicas verdadeiras e dignas de ser seguidas.