Portugal caiu no ardil, habilmente organizado, de não discutir o seu modelo de desenvolvimento, de não discutir a sua demografia, de não discutir a estrutura remuneratória que leva os jovens portugueses para o estrangeiro, de não discutir as várias desigualdades que dominam a sociedade portuguesa, nem tão pouco a segurança pública enquanto afirmação do estado e do exercício de cidadania. O ardil manhoso colocou os mais insignes comentadores, analistas e políticos a discutir percepções, sentimentos primários e fait divers do dia-a-dia, sem grande interesse para o nosso presente e sem nenhuma relevância para o nosso futuro. E é neste percurso que todos nos vimos confrontados com a opção simplista de ser contra ou a favor da imigração, com a vertigem da qualificação do outro sem o conhecer. Papagueando generalidades, e, sobretudo, sem cuidar de saber com profundidade e rigor porque é que chegámos à situação actual e como é que vamos construir o futuro. O que parece ser hoje verdade é que não sabemos quantos somos, quem somos e como somos. E, da resposta a esta pergunta, depende muito sabermos como seremos. Os dados oficiais dizem-nos que, em finais de 2024, residiam e trabalhavam em Portugal 1.543.000 cidadãos estrangeiros. Tomando por referência os Censos de 2021, residiam em Portugal 592.547 cidadãos com nacionalidade portuguesa e nascidos no estrangeiro. Admitindo que estes mais de dois milhões de cidadãos têm já uma qualquer relação com a administração pública portuguesa que permite a esta saber da sua existência, fomos agora “informados”, num momento de sinceridade (ingenuidade?) oratória, que há “largas dezenas de milhar de pessoas que estão irregularmente em território nacional.” Conclusão? Ninguém verdadeiramente sabe a dimensão, quantitativa e qualitativa, do que está a tratar. E, enquanto esta questão básica não for resolvida, vence o fait divers, a generalização, o julgamento sumário, a vozearia, a manha e o ardil. Mas pior, enquanto não conhecermos o presente não poderemos tratar do futuro. O primeiro censo da população portuguesa foi realizado em 1864 e desde 1890 que os censos são realizados com intervalos de uma década. Acontece que a realidade dos séculos passados pouco tem a ver com as dinâmicas populacionais de hoje. Talvez por isso alguns países já estão a adoptar modelos diferentes de censos populacionais. Será que Portugal não devia promover um momento censitário extraordinário que fundamentasse e credibilizasse as opções de política? Entre o conhecimento e a gritaria, aquele é sempre preferível. Advogado e gestor