100 anos de memórias

Publicado a
Atualizado a

Foi há 100 anos. Por esta altura do calendário, nas semanas finais de 1924, surgiram três filmes que viriam a ser consagrados como referências canónicas na história do cinema. A saber: Entr’acte, de René Clair, L’Inhumaine, de Marcel L’Herbier, e Greed, de Eric von Stroheim. Os dois primeiros são indissociáveis dos muitos cruzamentos e contaminações formais que marcavam o panorama das artes em França: Entr’acte contou com a colaboração de Francis Picabia e Erik Satie, respetivamente no argumento e na música; L’Inhumaine nasceu de uma proposta da cantora de ópera Georgette Leblanc, que assume também o papel central. Quanto a Greed, corresponde ao momento mais célebre, e também mais dramático, da carreira do austríaco Eric von Stroheim em Hollywood.

Vale a pena sublinhar a importância e o valor destes títulos centenários, quanto mais não seja porque passou a haver um estilo de (des)informação, sobretudo televisiva, que faz ou quer fazer crer que tudo o que aconteceu no período mudo, até à vulgarização comercial do som (a partir de 1927), se esgota nas corridas burlescas de Charles Chaplin ou Buster Keaton - o que, convenhamos, já não seria pouco.

Os filmes de Clair e L’Herbier pertencem a um contexto em que os desafios de Dadaísmo e Surrealismo marcavam, não apenas a produção artística, mas a própria noção do que era (ou poderia ser) o projeto de criar “algo” a que se daria o nome de arte. Esquematizando, poderá mesmo dizer-se que, por radical paradoxo, para os dadaístas (lembremos os escritos de Picabia ou Tristan Tzara), se tratava de afirmar o fôlego criativo de uma visceral antiarte. Esquematizando ainda mais, não esqueçamos o óbvio: os surrealistas transformariam tudo isso numa exuberante celebração do mundo dos sonhos.

Aconteceu em 1924: Entr’acte, L’Inhumaine (em cima) e Greed. FOTOS: D.R. / Arquivo

Nos seus acelerados 22 minutos de duração, Entr’acte distingue-se, assim, pela aplicação festiva do cinema como infinita discussão do próprio conceito de narrativa: das ações tidas como mais absurdas à descontinuidade da montagem, tudo é possível na reprodução do mundo à nossa volta - a ponto de já não haver reprodução, apenas reinvenção.

Com a sua espectacular cenografia e as diversas tintagens das cenas, L’Inhumaine é um parente próximo da curta-metragem de Clair. Com uma diferença, ou melhor, um complemento dramático que está longe de ser banal: a história da famosa cantora Claire Lescot (a personagem de Georgette Leblanc) e dos homens que por ela se apaixonam envolve o misto de carnalidade e artifício que o melodrama já tinha conquistado, em particular a partir de O Lírio Quebrado (1919), de David W. Griffith.

O caso de Greed (título português, Aves de Rapina) define um capítulo autónomo no interior da própria história do cinema: estamos perante um filme que, como poucos, justifica o adjetivo maldito.  Adaptando o romance McTeague, de Frank Norris (publicado em 1899), nele se narra a odisseia de avareza, como diz o título original, protagonizada por um dentista, John McTeague, depois de ter ganhado um prémio da lotaria.

Stroheim imaginou-o como uma furiosa parábola sobre os monstros da identidade humana, a partir de uma ambição narrativa sem limites, de tal modo que a versão original durava perto de nove horas. Que é como quem diz: a história de Greed, obra-prima para sempre truncada por produtores e distribuidores, confunde-se com a saga das diversas cópias que, ao longo de um século, foram sendo amputadas e refeitas - atualmente, na sua versão mais “fiel”, existe com a duração de quase quatro horas.

Invenção narrativa, ousadia de montagem, efeitos visuais invulgares, durações atípicas... 100 anos depois, estes três filmes distinguem-se por uma energia criativa capaz de reduzir a pó as “modernices” que nos tentam vender enredadas na mediocridade do politicamente correto. Não precisamos de ser nostálgicos para lidar com tal energia. Basta não desistirmos de ser modernos. Envelhecidos, se for caso disso, mas modernos.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt